A radicalização do presidente Jair Bolsonaro e de seus seguidores, com ameaças à democracia, ao Judiciário e apelo ao armamento da população gerou uma ferramenta inimaginável nas bases do PT e PSB antes do avanço da extrema direita: a organização de núcleos profissionais de segurança e inteligência para enfrentar os grupos paramilitares que, a seis meses da eleição, se movimentam à luz do dia. Ouvidos pela Agência Pública, os responsáveis por esses núcleos afirmam que a principal tarefa agora é esquadrinhar, identificar e monitorar os diferentes grupos de inspiração paramilitar que, sem segredos, o presidente afaga.
Coordenador nacional do núcleo antifascista criado pelo PT, o vereador de Porto Alegre Leonel Radde, policial civil e alvo constante dos extremistas – ele contabiliza um média de duas ameaças por semana-, acredita que os chamados CACs – caçadores, atiradores e colecionadores de armas – representam o maior risco de violência eleitoral. Segundo ele, boa parte dos 600 mil CACs são eleitores de Bolsonaro que, favorecidos por decretos do governo federal, têm capacidade individual para comprar até 60 armas de diferentes calibres. Radde afirma que, como mostram casos já levantados por especialistas de segurança e pela polícia, parte das armas compradas com esses registros pode estar sendo revendida de forma ilegal para milicianos, traficantes, neonazistas, fascistas e outros criminosos.
Um levantamento feito pelo vereador aponta mais de 500 células no país formadas por ativistas de extrema direita que representam algum risco de se envolver em atos de violência. Cada célula, segundo ele, é formada por um número que varia de cinco a dez pessoas, todas elas com forte interação pelas redes sociais. No Rio Grande do Sul, o vereador contou 40 células. Há também nesse grupo CACs, motoqueiros alinhados a Bolsonaro, pessoas com distúrbios mentais, os chamados lobos solitários, e misóginos, como os “incel” (celibatários involuntários).
“É gente empoderada pelo discurso bolsonarista e disposta a qualquer coisa. Vai se encaminhando cada vez mais para atuações extremistas”, afirma o vereador gaúcho que, pela experiência de policial e pela leitura de ameaças frequentes difundidas na rede, se diz preocupado com a segurança de Lula, principalmente no Sul e Sudeste do país. Em 2018, os ônibus da caravana de Lula foram bloqueados no Rio Grande do Sul e depois alvejados a tiros no Paraná, um mês antes de o petista ter a prisão decretada pelo ex-juiz Sérgio Moro. No último dia 6 de maio, a dispersão de manifestantes bolsonaristas que cercaram o carro de Lula na saída de um condomínio, em Campinas, revelou que o pré-candidato do PT já reforçou sua segurança, da qual fazem parte agentes do Exército lotados no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), prerrogativa que ele tem como ex-presidente.
Segundo o vereador, o crescimento de grupos neonazistas é registrado em todo o país, mas tem mais densidade no interior de São Paulo e, em especial, nos Estados do Sul. No Rio Grande do Sul, segundo Radde, há denúncias de proliferação de clubes de motoqueiros que fazem clara apologia ao nazismo.
A avaliação do coordenador do núcleo de segurança petista é similar àquela do PSB, aliado ao partido de Lula, ao qual pertence o ex-governador Geraldo Alckmin.“Não estamos num jogo político. Estamos numa guerra política. O Bolsonaro sabe que se perder, com a esquerda no poder, vai direto para a cadeia. É isso que o preocupa”, afirma o veterano militante de esquerda Acilino Ribeiro, secretário nacional do Movimento Popular Socialista (MPS) do PSB, ao qual está vinculada a Coordenação Executiva de Relações Internacionais e Inteligência Partidária, que monitora os radicais de direita ligados a Bolsonaro e as ações do governo contra movimentos sociais.
Ex-militante do PCB e do MR-8, Ribeiro foi preso duas vezes durante a ditadura. Nos últimos anos tem se dedicado a estruturar um serviço de inteligência de esquerda, que ele chama de Rede Nacional de Inteligência Cidadã (RENIC). “Não há nada de ilegal. Como o estado está lá vigiando a sociedade, nós temos mais direito de fiscalizar o estado e agentes públicos. A RENIC vigia a Abin, mas a Abin também vigia a RENIC”, diz Acilino.
O trabalho de inteligência desse núcleo aponta que os diversos grupos paramilitares que gravitam em torno do presidente somam cerca de 100 mil militantes, dos quais, pelo menos dez mil podem ser considerados como linha de frente, ou seja, milicianos, ex-policiais ou paramilitares que se apresentam como CACs e militares da reserva saudosistas da ditadura.
“Dez mil é uma conta empírica que faço com base na liberação da venda de armas e de balas. É gente capaz de fazer uma luta armada pela direita. A junção desses grupos, que foram se aglutinando em torno da figura de Bolsonaro, estão moldando um estado policial miliciano”, afirmou Acilino Ribeiro.
Parte dos saudosistas da ditadura aos quais se refere o dirigente do PSB, são oficiais generais que já vestiram o pijama e hoje se entrincheiram nos clubes do Exército, Marinha e Aeronáutica cujos dirigentes assinaram nota em que consideram o julgamento do deputado Daniel Silveira “inconstitucional e imoral”, e elogiaram o decreto de perdão editado por Bolsonaro como decisão que “restabeleceu o estado de direito”.
Acilino Ribeiro não tem dúvidas de que apoiadores de Bolsonaro, com apoio velado de militares da ativa, estão se organizando para criar conflitos caso Bolsonaro seja derrotado. “Eles estão preparando isso”, afirma. “O Bolsonaro vai colocar as Forças Armadas numa encruzilhada e chamá-los para uma guerra civil, para tentar dar o golpe”, prevê.
Segundo ele, o grupo bolsonarista mais perigoso é o dos milicianos urbanos e rurais. “São pessoas extremamente violentas, que estavam atrás de um mito que lhes desse respaldo na busca de um estado autoritário, pois sabem que não sobrevivem na democracia”, cutuca Acilino Ribeiro.
Um dos dirigentes do Movimento Policiais Antifascismo (MPAF), o policial potiguar Pedro Chê também avalia que o presidente Bolsonaro aposta no caos e diz que os grupos que o cercam “têm os meios” para deflagrar um conflito. Chê alerta que, originários de bases sociais autoritárias e golpistas, os bolsonaristas não podem ser ignorados pela ameaça que representam. Esses militantes de direita, diz o policial, já criaram base suficientemente forte para gerar conflitos. “A questão é em que momento isso pode acontecer. É uma galera que anda na esteira de Bolsonaro, alimenta ideias autoritárias e sonha em poder participar de um conflito. Estão comprando muita arma e se passando por colecionador ou atirador, num nível de armamento jamais visto e em alta proliferação”, diz o policial.
O dado mais alarmante sobre a corrida armamentista estimulada pelos decretos editados por Bolsonaro foi revelado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, com base em levantamento no Sistema Nacional de Armas (Sinarm), da Polícia Federal: de 637.972 registros existentes até 2017, o número de armas no final de 2020 saltou para 1.279.491, um espetacular aumento de 100%. Segundo o Exército, o número de CACs, que era 225 mil em 2019, também dobrou em 2020, chegando a 496 mil. No Distrito Federal, houve uma explosão no registro de novas armas, saltando de 35.693 até 2017 para 236.296 em 2020, aumento de 562%. No total o número de armas em poder da população atualmente chega a 2.077.126, o que significa uma para cada 100 pessoas. Especialistas criticam a falta de controle sobre o destino desse arsenal.
Pelas informações e análises que circulam no meio policial, segundo Pedro Chê, militares podem até manifestar simpatia a Bolsonaro, mas dificilmente apoiariam ações fora da lei. “O Exército trabalha com a conjuntura internacional e sabe que não tem amparo dos Estados Unidos para uma aventura golpista. Os militares têm projeto de poder, espaço no governo e, com muito a perder, não se arriscariam a se desvincular do governo. Uma aventura tragaria os militares, especialmente o alto oficialato que está no poder”, afirma Pedro Chê, se referindo ao avanço da presença militar no poder. Dados do Ministérios da Defesa e da Economia mostram que os generais controlam mais de 3 mil cargos de confiança, 8.450 vagas temporárias, oito dos 22 ministérios, 16 estatais e 61% das empresas de administração direta ou indireta da União.
Com tamanha presença no poder, ele acha que os militares da ativa não tomariam a iniciativa de se envolver por avaliar que, em caso de derrota da pretensão golpista de Bolsonaro, perderiam o que já conquistaram e ainda abririam espaço para que um governo de esquerda faça uma reforma que os afaste do governo e da política. Chê acha, no entanto, que a expectativa de Bolsonaro é criar caos para mais tarde tentar atrair os militares para uma intervenção.
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O vereador Leonel Radde concorda: “A tentativa de golpe virá pelos grupos civis que cercam Bolsonaro. Forças legais podem até dar suporte, mas não de forma frontal”, afirma o petista. Segundo ele, há um claro movimento dos grupos bolsonaristas no sentido de forjar uma luta armada pela direita. Pedro Chê afirma que o núcleo central do bolsonarismo é extremamente perigoso e cita parte dos colecionadores e atiradores da rede privada, onde há “gente mal intencionada e mais perigosa, alguns desempregados, que não tem muito a perder”. Ele também lembra o apoio dos policiais a Bolsonaro, especialmente da PM.
“São forças que podem até subverter a ordem estatal. Bolsonaro tentou isso no 7 de setembro (2021) e já havia estimulado o motim da PM no Ceará, no episódio em que o Cid (senador Cid Gomes) passou com o trator”, afirma o dirigente antifascista, para quem, se chegar ao poder a esquerda deve se preocupar com uma reforma profunda nas instituições de segurança. “A esquerda tem de cuidar disso. É uma granada amarrada num barbante. Pode ser com Bolsonaro ou outro”, adverte.
Com o trabalho preventivo de inteligência, Acilino Ribeiro, Leonel Radde e Pedro Chê pretendem, através dos partidos, alertar às autoridades competentes sobre riscos concretos. Para eles, a extrema direita se movimenta para atacar o STF e TSE, como ficou claro com a concessão de perdão de Bolsonaro ao deputado Daniel Silveira, indicando que não aceitaria outro resultado que não seja a reeleição do presidente. Por essa tese, se farejar a derrota, Bolsonaro partiria para uma tentativa de ruptura. “Faremos a luta institucional e de massas contra a extrema-direita. Não aceitaremos o conflito. Vamos fortalecer as instituições da República para que elas os enfrentem”, afirma Acilino Ribeiro.