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Ocidente na mira

Putin anuncia a política do bumerangue; bateu, levou

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Aleksei Druzhinin/Via Pátria Latina

O discurso de Putin à Assembleia Federal russa – uma real comunicação de Estado da Nação – foi um golpe de judo que deixou os falcões da esfera atlântica particularmente estupefatos.

O “Ocidente” nem sequer foi mencionado pelo nome. Só indiretamente, ou por meio duma metáfora deliciosa, O Livro da Selva, de Kipling. A política externa só foi abordada no fim, quase como uma reflexão de última hora.

Durante a maior parte de uma hora e meia, Putin concentrou-se em questões internas, pormenorizando uma série de políticas que competem ao estado russo para ajudar os que precisam – famílias de baixos rendimentos, crianças, mães solteiras, jovens profissionais, os menos privilegiados – por exemplo, cheques de saúde universal, até à possibilidade de um rendimento universal num futuro próximo.

Claro que também precisou de abordar o estado altamente volátil das atuais relações internacionais. A maneira concisa que escolheu para o fazer, contra-atacando a predominante russofobia na esfera atlântica, foi bastante evidente.

Primeiro, o essencial. A política da Rússia “é garantir a paz e a segurança para o bem-estar dos nossos cidadãos e para o desenvolvimento estável do nosso país”.

Contudo, se “alguém não quer… o diálogo, e prefere um tom egoísta e arrogante, a Rússia encontrará sempre uma forma de manter a sua posição”.

Destacou “a prática das sanções económicas ilegais, motivadas politicamente”, relacionando-a com “uma coisa muito mais perigosa” tornada invisível na narrativa ocidental: “a recente tentativa de organizar um golpe de estado na Bielorrússia e o assassínio do presidente desse país”. Putin fez questão de sublinhar, “foram ultrapassadas todas as fronteiras”.

A conspiração para matar Lukashenko foi descoberta pelos serviços de informações russos e bielorrussos – que detiveram diversos intervenientes apoiados, obviamente, pelos serviços de informações dos EUA. O Departamento de Estado americano, conforme esperado, negou qualquer envolvimento.

Putin: “Vale a pena realçar as confissões dos participantes detidos na conspiração de que estava a ser preparado um bloqueio a Minsk, incluindo as infraestruturas e as comunicações da cidade, o total encerramento de toda a rede de energia da capital da Bielorrússia. A propósito, isto significa os preparativos para um ataque cibernético maciço”.

E isso conduz a uma verdade muito incómoda: “Segundo parece, não é por acaso que os nossos colegas ocidentais têm rejeitado casmurramente inúmeras propostas do lado russo para instituir um diálogo internacional na área das informações e da segurança cibernética.”

“Assimétrica, rápida e dura”

Putin fez notar como “atacar a Rússia” passou a ser “um desporto, um desporto novo, para quem faz as afirmações mais ruidosas”. Depois, citou Kipling: A Rússia é atacada por tudo e por nada sem qualquer razão. E, claro, todo o tipo de mesquinhos Tabaquis [chacais] rondam em volta de Shere Khan [o tigre] – tido se passa como no livro de Kipling – uivando e prontos a prestar serviço ao seu soberano. Kipling era um grande escritor.”

A metáfora – estratificada – ainda é mais evidente quando evoca o Grande Jogo geopolítico do século XIX entre os impérios britânico e russo, de que Kipling foi protagonista.

Putin sublinhou mais uma vez que “não queremos queimar pontes. Mas, se alguém interpreta as nossas boas intenções como indiferença ou fraqueza e tenciona queimar essas pontes totalmente ou fazê-las ir pelos ares, tem de perceber que a resposta da Rússia será assimétrica, rápida e dura”.

Esta é a nova lei da selva geopolítica – apoiada pelo Sr. Iskander, Sr. Kalibr, Sr. Avangard. Sr. Peresvet, Sr. Khinzal, Sr. Sarmat, Sr. Zircon e outros cavalheiros respeitados, hipersónicos e não só, posteriormente elogiados, segundo registo. Aqueles que espicaçarem o Urso ao ponto de ameaçarem “os interesses fundamentais da nossa segurança vão arrepender-se do que têm feito, como há muito tempo não se arrependeram de nada”.

As evoluções espantosas das últimas semanas – a cimeira China-EUA no Alasca, a cimeira Lavrov-Wang Yi em Guilin, a cimeira da NATO , o acordo estratégico Irão-China , o discurso de Xi Jinping no fórum Boao – convergem agora numa nova realidade crua e dura: a era dum Leviatão unilateral que impõe a sua vontade de ferro acabou.

Para os russófobos que ainda não perceberam a mensagem, um Putin tranquilo, calmo e controlado foi obrigado a acrescentar, “claro, temos suficiente paciência, responsabilidade, profissionalismo e autoconfiança na correção da nossa posição e no senso comum quando se trata de tomar decisões. Mas espero que ninguém pense em atravessar a linha vermelha da Rússia. E para onde forem, seremos nós a determinar em cada caso”.

Voltando à realpolitik, Putin mais uma vez teve de sublinhar a “responsabilidade especial” dos “cinco estados nucleares” para analisar seriamente “questões relacionadas com armamento estratégico”. É uma questão em aberto se terá a concordância da administração Biden-Harris – por detrás da qual existe uma mistura tóxica de neoconservadores e de imperialistas humanitários.

Putin: “O objetivo dessas negociações pode ser criar um ambiente de coexistência sem conflitos com base numa segurança igual, em relação não apenas a armas estratégicas como aos mísseis balísticos intercontinentais, bombardeiros pesados e submarinos, mas também, gostava de sublinhar, todos os sistemas ofensivos e defensivos capazes de executar tarefas estratégicas, independentemente do seu equipamento.”

Tal como a comunicação de Xi ao fórum Boao foi dirigido especialmente ao Sul Global, Putin realçou como “estamos a alargar os contatos com os nossos parceiros mais próximos ma Organização de Cooperação de Xangai, nos BRICS, na Comunidade de Estados Independentes e nos aliados da Organização do Tratado de Segurança Coletiva” e elogiou “os projetos conjuntos no quadro da União Económica da Eurásia”, considerados “instrumentos práticos para resolver os problemas do desenvolvimento nacional”.

Em resumo: a integração real, na sequência do conceito russo de “Eurásia Maior”.

“Tensões a atingir os níveis dos tempos da guerra”

Comparem agora tudo o que acima se diz com a Ordem Executiva da Casa Branca declarando uma “emergência nacional” para “lidar com a ameaça russa”.

Isto está diretamente ligado com o Presidente Biden – na verdade o pequeno grupo que lhe diz o que fazer, através de um auricular e teleponto – prometendo ao Presidente Zelensky da Ucrânia que Washington iria “tomar medidas” para apoiar a vontade de Kiev de reconquistar o Donbass e a Crimeia.

Há várias questões problemáticas com esta Ordem Executiva. Recusa, de facto, a qualquer nacional russo os plenos direitos à sua propriedade nos EUA. Qualquer residente norte-americano pode ser acusado de ser um agente russo envolvido na sabotagem da segurança dos EUA. Um sub-sub parágrafo (C), pormenorizando “ações ou políticas que corroam procedimentos democráticos ou instituições nos Estados Unidos ou no estrangeiro”, é demasiado vago para permitir que seja usado para eliminar qualquer jornalismo que apoie as posições da Rússia em questões internacionais.

As compras de títulos OFZ [1] russos foram sancionadas, assim com uma das empresas envolvidas na produção da vacina Sputnik V. Mas um benefício adicional desta sanção pode bem ser que, a partir de agora, todos os cidadãos russos, incluindo cidadãos de dupla nacionalidade, possam ser proibidos de entrar em território americano exceto os que tiverem uma rara autorização especial para além do visto ordinário.

O diário russo Vedomosti assinalou que, nesta atmosfera paranoica, os riscos para as grandes empresas, como a Yandex ou a Kaspersky Lab estão a aumentar significativamente. Apesar disso, estas sanções foram recebidas sem surpresa em Moscou. O pior ainda está para vir, segundo informações dos círculos próximos de Washington: dois pacotes de sanções contra o gasoduto Nord Stream 2 já aprovados pelo Departamento de Justiça dos EUA.

O ponto crucial é que esta Ordem Executiva de fato coloca toda a gente a denunciar as posições políticas da Rússia como a ameaçarem potencialmente a “democracia americana”.

Como fez notar o analista Alastair Crooke, isto é “um procedimento normalmente reservado a cidadãos de estados inimigos em tempos de guerra”. Crooke acrescenta, “Os falcões dos EUA estão a aumentar intensamente a parada contra Moscou. As tensões e a retórica estão a atingir níveis de tempos de guerra”.

É uma questão em aberto se o Estado da Nação de Putin será examinado seriamente pelo tóxico grupo lunático de neoconservadores e imperialistas humanitários, apostados em perturbar a Rússia e a China simultaneamente.

Mas o fato é que já começou a acontecer uma coisa extraordinária: uma espécie de “fim da escalada”.

Ainda antes da comunicação de Putin, parece que Kiev, a OTAN e o Pentágono perceberam a mensagem implícita na movimentação da Rússia de dois exércitos, maciças divisões de baterias de artilharia e divisões aerotransportadas para as fronteiras de Donbass e para a Crimeia – já para não mencionar importantes meios navais movimentados do Mar Cáspio para o Mar Negro. A NATO nem sequer podia sonhar em acompanhar isso.

Os factos em diversos terrenos são significativos. Tanto Paris como Berlim ficaram aterrorizados com um possível confronto de Kiev diretamente contra a Rússia e procuraram furiosamente impedir isso, ultrapassando a União Europeia e a OTAN.

Depois, alguém – talvez Jake Sullivan – deve ter sussurrado ao auricular do Crash Test Dummy [2] que não se pode andar a passear insultando um importante chefe de estado e ficar à espera de manter a “credibilidade” global. Assim, depois do já famoso telefonema de “Biden” para Putin, apareceu o convite para a cimeira da alteração climática, em que quaisquer promessas grandiosas são sobretudo retóricas, visto que o Pentágono continuará a ser a maior entidade poluidora do planeta Terra.

Washington pode ter encontrado uma forma de manter pelo menos um ponto de encontro de diálogo aberto com Moscovo. Simultaneamente, Moscou não tem nenhumas ilusões de que o drama Ucrânia/Donbass/Crimeia esteja terminado. Mesmo que Putin não se tenha referido a isso no Estado da Nação. E mesmo que o ministro da Defesa Shoigu tenha ordenado uma desescalada .

Andrei Martyanov, de valor sempre inestimável, assinalou satisfeito o “choque cultural quando Bruxelas e D.C. começaram a suspeitar que a Rússia não ‘quer’ a Ucrânia. O que a Rússia quer para este país é que ele apodreça e rebente sem que os excrementos desta implosão atinjam a Rússia. Que o Ocidente pague a limpeza desse setor também se encontra nos planos russos para o Bantustão ucraniano.”

O facto de Putin nem sequer se ter referido ao Bantustão no seu discurso confirma esta análise. Na medida em que estão em causa as “linhas vermelhas”, a implícita mensagem de Putin continua a ser a mesma: uma base da OTAN no flanco ocidental da Rússia não será tolerada pura e simplesmente. Paris e Berlim sabem disso. A União Europeia encontra-se em negação. A OTAN recusar-se-á sempre a reconhecê-lo.

Voltamos sempre à mesma questão crucial: se Putin conseguirá, contra todas as dificuldades, fazer um movimento combinado Bismarck-Sun Tzu e criar uma duradoura entente cordial germano-russa (uma coisa muito diferente de uma “aliança”). O gasoduto Nordstream 2 é um dente essencial na engrenagem – e é isso que enfurece os falcões de Washington.

Seja o que for que aconteça a seguir, para todos os efeitos práticos está instalada a Cortina de Ferro 2.0 e não irá desaparecer tão depressa. Vai haver mais sanções. Já tudo foi utilizado contra o Urso, exceto uma guerra acesa. Vai ser muito interessante observar como, e por que vias, Washington se envolverá num “processo diplomático de redução da escalada” com a Rússia.

A Potência Hegemónica pode sempre encontrar uma forma de lançar uma enorme campanha de relações públicas e acabar por reclamar um êxito diplomático na “dissolução” do impasse. Bom, isso certamente ultrapassa uma guerra acesa. De resto, os modestos aventureiros do Livro da Selva ficaram avisados: se tentarem alguma coisa divertida estejam preparados para enfrentar algo “assimétrico, rápido e duro”.

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