Aparando arestas
Putin diz que guerra só acaba com criação do Estado palestino
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emMoscou tem manifestado disponibilidade para ajudar a mediar um fim negociado para a crise israelense-palestina. Mas onde residem as verdadeiras simpatias da Rússia, tanto historicamente como no momento presente? Será uma resolução do conflito negociada pela Rússia uma possibilidade real?
“Neste momento, a coisa mais importante [na crise do Hamas com Israel] é parar o derramamento de sangue. Os esforços coletivos são mais do que necessários no interesse de um cessar-fogo rápido e da estabilização da situação na região”, disse o presidente russo Vladimir Putin nesta sexta -feira, 13, em reunião de chefes de Estado da Federação Russa e aliados em Bishkek, Quirguizistão.
“Gostaria de enfatizar que a Rússia está pronta para coordenar com todos os parceiros com mentalidade construtiva. Partimos da opinião de que não há alternativa à resolução do conflito através de negociações para paz temporária”, disse Putin, acrescentando que uma ofensiva terrestre israelense em Gaza resultaria em baixas civis “absolutamente inaceitáveis”.
O objetivo das conversações “deveria ser a implementação da fórmula de dois Estados, aprovada pela ONU há décadas, que prevê a criação de um Estado palestino independente com capital em Jerusalém Oriental, coexistindo em paz e segurança com Israel”, disse o presidente russo. “Precisamos nos preocupar em resolver esta questão por meios pacíficos. Na situação atual não há alternativa”, enfatizou.
Reiterando a sua posição anteriormente declarada sobre a crise ser o resultado da política regional fracassada de Washington, Putin destacou que o chamado Quarteto sobre o Médio Oriente , composto pela ONU, Rússia, Estados Unidos e União Europeia, não foi acionado para tentar esfriar as tensões.
“Sob pretextos rebuscados, os EUA bloquearam este formato, que era único e, aliás, tinha um mandato aprovado por uma resolução relevante da ONU. Foi feita uma tentativa de resolver um problema político, um problema profundo, nomeadamente a criação de um Estado palestino independente, com a ajuda de certos incentivos econômicos”, frisou Putin, referindo-se ao plano de paz palestino-israelense introduzido no início de 2020 com a administração de Donald Trump propondo grandes concessões territoriais palestinas em troca de doações financeiras.
O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, criticou a proposta na época, dizendo que ela pertencia à “lata de lixo da história”.
Os esforços da Rússia para encontrar uma abordagem equilibrada à atual crise fizeram soar o alarme nos EUA e na Otan e nos seus leais servidores nos meios de comunicação social, com o Ccidente produzindo artigo após artigo sobre como Moscou poderia “se beneficiar” ou “tirar vantagem” do conflito, e tentando distorcer a narrativa da forma mais complicada para encontrar um suposto vestígio de influência russa na escalada da violência.
A campanha de propaganda decorre da decisão de Putin de não se juntar aos líderes ocidentais na oferta de apoio total a Israel e da Rússia e, em vez disso, mergulhar na história para salientar que a “raiz de todos os problemas” na crise palestina-israelense decorre do fracasso da criação, em 1947, ordenada pela ONU, de um Estado palestino ao lado de um Estado judeu.
O problema palestino “toca o coração” de todos os residentes do Médio Oriente e de todos os muçulmanos em geral, disse Putin, acrescentando que a posição da Rússia sobre o conflito “é bem conhecida tanto pelo lado israelense como pelos nossos amigos na Palestina”.
No que diz respeito à escalada, o presidente russo apelou, em primeiro lugar, para que os civis fossem deixados de fora dos combates. “Se os homens decidirem lutar entre si, deixe-os fazê-lo. Mas deixem as mulheres e as crianças em paz”, disse, sublinhando que isto se aplica a ambos os lados.
Posição forjada ao longo de décadas
A atual postura de Moscou relativamente à questão palestina-israelense, que procura alcançar o equilíbrio máximo, segue-se a décadas de posições que mudaram dramaticamente com base em considerações geopolíticas e ideológicas, remontando ao início da crise no final da década de 1940.
Como membro fundador do sistema das Nações Unidas que surgiu após a Segunda Guerra Mundial, a União Soviética apoiou entusiasticamente a criação de Estados palestinos e judeus separados. A URSS tornou-se o primeiro país do mundo a reconhecer Israel em 1948, e chegou ao ponto de aprovar a venda de armas pela Checoslováquia, um país do bloco soviético, a Tel Aviv durante a Guerra Árabe-Israelense de 1948-1949.
Contudo, as relações entre a União Soviética e Israel rapidamente azedaram devido ao fracasso do prometido Estado palestino em materializar-se, com Tel Aviv ignorando a proposta de Moscou para a tutela do Conselho de Segurança da ONU sobre a cidade de Jerusalém.
As exigências israelenses solicitando à URSS que permitisse a imigração de judeus soviéticos, além dos esforços graduais de Tel Aviv para se aproximar do Ocidente, levaram Moscou a encerrar as relações comerciais em 1949 e a romper totalmente as relações diplomáticas no início de 1953, após um ataque terrorista na missão diplomática soviética em Israel, que Moscou atribuiu ao governo israelense.
As relações foram restauradas logo após a morte de Joseph Stalin em meados de 1953, mas permaneceram tensas, com o apoio soviético aos movimentos de libertação nacional antiocidentais em todo o Médio Oriente, incluindo o Egito de Gamal Abdel Nasser – que se recusou a reconhecer o direito de existência de Israel, naturalmente prejudicando os laços.
Em Junho de 1967, depois de Israel ter lançado ataques aéreos preventivos contra os egípcios e desencadeado uma nova guerra regional com o Egito, a Jordânia, a Síria, o Iraque e a Argélia, Moscou rompeu novamente relações com Tel Aviv.
De 1967 a 1985, a URSS não manteve quaisquer contatos com Israel, com as agências de inteligência soviéticas e israelenses confrontando-se em pontos críticos da Guerra Fria em todo o mundo, desde a África à América Latina, e com Moscou enviando milhões de dólares em equipamentos militares cada vez mais avançados para seus aliados do Oriente Médio.
Ao longo deste período, a URSS manifestou o seu total apoio à Organização de Libertação da Palestina e ao seu líder de longa data, Yasser Arafat.
Os laços começaram gradualmente a ser restaurados em meados da década de 1980, depois de Mikhail Gorbachev ter lançado a sua perestroika e as reformas do “Novo Pensamento Político” destinadas a acabar com a Guerra Fria. Os contatos consulares soviético-israelenses foram retomados em 1987 e as relações diplomáticas foram totalmente restauradas em outubro de 1991, meses antes do colapso da União Soviética.
No período pós-soviético, os laços entre a Rússia e Israel aqueceram rapidamente, passando a incluir estreitos contatos diplomáticos, econômicos, culturais e até militares, complementados pela migração de centenas de milhares de judeus da Rússia para Israel, com isenção de visto, acordado em 2008. Politicamente, apesar da aliança de Israel com os EUA, Moscou buscou maneiras de encontrar um terreno comum com Tel Aviv, concentrando-se fortemente na cooperação no contraterrorismo (mas sem concordar em categorizar formalmente certos inimigos de Israel, incluindo o Hamas e o Hisbolá, como “grupos terroristas”).
Ao longo do período pós-soviético, a Rússia também continuou a apoiar a Palestina na sua busca pela criação de um Estado, juntando-se a 137 outros membros da ONU que reconhecem a Palestina como um Estado soberano, e as autoridades russas, incluindo o presidente Putin, reunindo-se regularmente com representantes da OLP, do Hamas e a Autoridade Nacional Palestina.
Durante todos os sucessivos episódios de violência, em 2008-2009, 2012, 2014 e 2020, a Rússia apelou à rápida suspensão dos combates. Em 2012, Moscou votou a favor da resolução da Assembleia Geral que concedia à Palestina o estatuto de observador não-membro na ONU.
A escalada da crise ucraniana para uma guerra por procuração total da Otan contra a Rússia em 2022 aumentou um pouco as tensões bilaterais com Israel, com o apoio limitado de Tel Aviv a Kiev, combinado com uma agitação diplomática sobre os comentários feitos pelo ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, sobre o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, prejudicando os laços com Moscou.
No entanto, mesmo durante a crise, as conversações nos bastidores continuaram, com o ex-primeiro-ministro israelense Naftali Bennett, revelando que ofereceu os seus serviços como mediador indireto e que a Rússia e a Ucrânia estavam aparentemente à beira de um acordo, antes de os EUA e os seus aliados entrrarem no circuito para acabar com as negociações.
Então, quem a Rússia apoia?
A resposta à questão sobre quem a Rússia apoia é: ambos os lados. Moscou quer ver uma resolução pacífica para a crise, na qual os interesses de ambos os lados sejam satisfeitos.
O esforço de décadas da Rússia para tentar encontrar um equilíbrio nas relações com Israel e a Palestina (cuja condição de Estado a Rússia realmente reconhece, ao contrário dos EUA, por exemplo) e o seu esforço mais amplo para estabelecer laços calorosos com outros atores-chave, como o Irã, inimigo jurado de Israel , faz de Moscou um mediador potencialmente ideal e natural.
Se os Israelenses e os palestinos concordarem com tal mediação é uma decisão que eles e os seus aliados e parceiros regionais e internacionais terão de tomar.