Notibras

Quadrinhos monstruosos que vão fazendo sucesso

Foto/Reprodução

Um par de canetas Bic, afinal, pode servir à grande arte: é o que prova Emil Ferris e o seu Minha Coisa Favorita É Monstro, graphic novel incomum e poderosa que fez a autora, estreante no formato livro, arrebanhar três prêmios Eisner bem como o Fauve d’Or, a principal distinção do Festival de Angoulême.

Descendente de pais artistas (e meio quebrados, como ela conta), Ferris trabalhou por anos como desenhista industrial e designer (para marcas como o McDonald’s). Mas foi com o Monstro que Ferris viu a repercussão de seu trabalho atingir marcas antes inéditas para ela. Um de seus ídolos, Art Spiegelman (de Maus), depois de ver o livro disse: “Emil Ferris é uma das artistas de quadrinhos mais importantes do nosso tempo”.

Desenhado com canetas Bic e canetinhas, o livro emula um diário gráfico de Karen, garota de 10 anos apaixonada por filmes de monstros e por belas-artes, retratada por si mesma como uma “lobis-moça” – na verdade, boa parte dos personagens do livro são retratados como monstros. Os quadros pouco ortodoxos estão sobre folhas pautadas de caderno, e Ferris conta que começou a desenhar num caderno de fato, mas depois passou a trabalhar em camadas por conta da edição.

“Achei um caderno antigo, de quando estava na segunda série. Também era em caneta Bic, então quando fiz o livro eu estava reprisando, copiando, ressuscitando (e essa é uma boa palavra) um jeito antigo de trabalhar, algo que fiz quando era criança”, explica a autora, com voz calma e sintaxe elegante, por telefone, de sua casa em Chicago, onde nasceu. “O que eu tinha disponível eram meus cadernos de escola e as canetas. Era assim que desenhava e agora retornei a isso.”

Situado numa vizinhança multiétnica de Chicago no fim dos anos 1960, o livro segue os anseios da garota e funciona como prévia de um romance de formação (um segundo volume está sendo preparado por Ferris), mas também como livro policial – uma vizinha da família morre assassinada em circunstâncias misteriosas, e a investigação da jovem “detetive”, dona de uma curiosidade inabalável, conduz o livro. Isso tudo numa atmosfera noir que não deixa de lado aspectos de horror, ficção científica e surrealismo.

“Somos todos monstros”, diz. “Podem até haver seres fora de nós que nos digam para fazer certas coisas, mas a verdade é que monstros aparecem sempre com aspectos da raça humana. Criamos esses seres do espaço, subsolo, mas, no fundo, estamos sempre no campo de batalha das nossas almas.”

O embate com o lado obscuro de cada um, para ela, é uma oportunidade rica e verdadeira. “É melhor aceitar seu status de monstro e não imaginar que ‘monstro’ significa mal e deve ser morto. Mesmo para se curar completamente de uma doença, apenas eliminá-la não curaria de fato, seria necessário fortalecer o organismo. Ser um monstro significa ser imaginativo, não estar limitado às leis da física. Não é bom ter isso à sua disposição?”

Mesmo com as imagens muito particulares – e a própria autora admite que as emoções que sente se transportam num processo invisível para as linhas do desenho – a mancha de texto nas páginas é geralmente densa. Não por acaso, a autora é mestre em escrita criativa pelo Art Institute of Chicago e a literatura sempre ocupou um lugar de destaque na sua vida. Hoje em dia, ela ouve audiolivros enquanto desenha porque, por causa de uma doença que contraiu em 2001, a capacidade de leitura contínua alojada em algum canto do seu cérebro foi reduzida.

A história de Emil ganha tons de dramaticidade, assim como seu livro, bem pouco usuais.

Quando o trabalho de ilustradora não fazia caixa suficiente para os boletos mensais, Ferris trabalhava como faxineira e garçonete – então, há 17 anos (ela agora tem 57), ela foi picada por um mosquito e contraiu a Febre do Nilo Ocidental: 80% das infecções não geram sintomas em humanos; em casos mais graves, como o de Ferris, há consequências sérias. Foram três semanas em coma, algumas sequelas cerebrais e paralisia nos membros (o que a impediu de andar, e os desenhos passaram a sair depois de muito esforço e ajuda da filha, na época com 6 anos).

Escrever Minha Coisa Favorita É Monstro fez parte do processo de recuperação. “Ainda estou me recuperando. Tenho uma paralisia parcial na parte de baixo do corpo e muito menos mobilidade na mão direita. Foi mais de um ano para andar uma distância aceitável. Ando com músculos que não servem exatamente para isso. O corpo é maravilhoso, ele pergunta: ‘Bem, você quer fazer isso? Vamos tentar desse jeito’.”

Chegar tão perto da morte, explica, a ajudou a perceber que ainda não tinha realizado seu propósito: contar histórias. “Isso se tornou imperativo. Não podia esperar mais. Você nunca sabe quanto tempo tem, mas escolhi que ainda tenho algum tempo, porque tenho várias histórias para contar. Então me esforcei ao máximo.”

A saga tem mais um capítulo, porém. Depois de anos de esforço e trabalho, busca por editoras, etc., o livro estava marcado para sair em outubro de 2016 nos EUA. O navio com os 10 mil exemplares impressos na China pertencia a uma companhia sul-coreana que faliu no meio da viagem: os contêineres ficaram meses presos no Canal do Panamá até que a editora conseguisse resgatar os volumes.

“Você move todas as suas forças em direção a um lugar. Assim, há muitos outros ímpetos invisíveis que se juntam para que aquilo aconteça. Não sou jovem, acredito que minha experiência de vida juntou elementos invisíveis, espirituais. Há uma mágica em combinar palavras e imagens. Os egípcios já entendiam isso. Fazer esse livro, para mim, foi como praticar essa mágica.”

Sair da versão mobile