No intuito de evitar sua derrota eleitoral, o bolsonarismo decidiu intensificar a guerra de caráter moral, religioso e cultural contra as forças populares que o estão encurralando.
Este fato colocou a quem atua no campo da esquerda um sério dilema: aceitar o desafio e travar o combate em cima da pauta religiosa e de costumes que nos é imposta, ou esquivar-nos da mesma para nos concentrar tão somente em questões relacionadas com a vida material real de nosso povo?
Para início de conversa, precisamos entender que a decisão sobre qual rumo tomar no que diz respeito a esta disjuntiva não depende exclusivamente de nós. Embora tenhamos franca preferência por nos ater às questões de cunho econômico, os bolsonaristas pensam de modo diferente. Portanto, ainda que nós não tragamos à tona os temas morais e religiosos, eles o trarão. E os embates serão inevitáveis.
Assim que, independentemente de nossa vontade, esses tópicos vão entrar em cena. E eles vão aparecer exatamente porque fazem parte da constituição do imaginário de nosso povo. Em vista disto, como um ativista do campo popular deveria se comportar ao ser indagado a respeito desse tipo de questões? Simplesmente ignorá-las e conduzir a conversa para assuntos de nosso interesse?
Creio que nem é preciso gastar muito tempo para deixar evidente que não há como escapar ileso deste problema. Temos, sim, de tratar destas questões. E, além disto, também temos plena convicção de que dispomos de recursos e argumentos mais do que suficientes para travar a luta e ser vitoriosos nos embates. O que não podemos aceitar é a passividade e a indiferença na abordagem do problema.
Como sabemos, na guerra religiosa e de costumes, o bolsonarismo se difunde em especial entre os seguidores de setores fundamentalistas do cristianismo, principalmente, os evangélicos neopentecostais e os católicos carismáticos. Tanto assim que são pastores e padres dessas ramificações alguns dos mais empedernidos transmissores das concepções bolsonaristas no seio de nossa população.
É em razão do que acabamos de expor que considero que deveríamos lançar mão em muito maior escala da figura de Jesus como forma de enfrentar as campanhas de satanização e desinformação desatadas entre essas comunidades religiosas cristãs. Precisamos mostrar e provar aos seguidores dessas correntes religiosas que, se seu objetivo for estar alinhados aos ensinamentos de Jesus, muitas das orientações que lhes vêm sendo dirigidas deveriam ser rechaçadas.
Não proponho que entremos em nenhuma guerra religiosa. O que não dá para aceitar passivamente é que o nome de Jesus seja levantado para defender aquilo contra o que Jesus lutou valorosamente durante sua vida como ser humano. Não obstante quaisquer conotações religiosas, o Jesus ser humano mencionado nos Evangelhos não deixa margem para dúvidas sobre suas prioridades e seus interesses em termos sociais.
É revoltante constatar que muitos picaretas andam apelando ao nome de Jesus para impedir que o povo humilde consiga alcançar melhorias em seu nível de vida concreto. Se, nos Evangelhos, Jesus nunca tomou o lado dos ricos e poderosos em contraposição aos mais humildes, como aceitar que, agora, ele esteja sendo usado para manter regalias dos mais privilegiados em detrimento do conjunto do povo trabalhador?
Sabendo que Jesus foi um inimigo visceral da mentira, não dá para tolerar que seu nome continue sendo empregado para difundir campanhas odiosas que visam vilipendiar os lutadores populares. Se tomarmos como válida a frase “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará”, como tolerar que alguns religiosos pratiquem e aceitem a mentira como instrumento para difamar e destruir seus desafetos? Pode um mentiroso ser considerado um verdadeiro cristão?
Por que os pastores e padres bolsonaristas não explicam aos fieis que frequentam suas igrejas que Jesus nunca, jamais, se envolveu com questões de orientação sexual? Se Jesus sempre foi um ardoroso pacifista, por que os pastores e padres bolsonaristas decidiram transformá-lo num raivoso defensor do armamentismo e da prática da violência contra os mais vulneráveis?
Estando patente que Jesus sempre ensinou que era por sua prática de vida que uma pessoa seria tida como boa ou má, por que os pastores e padres bolsonaristas insistem em condenar outras pessoas em função da religião que elas seguem? Por que uma criança nascida em uma família de religião de matriz africana teria de estar condenada independentemente do que ela ou seus pais praticam em vida? Quando foi que Jesus disse que era assim que tinha de ser?
Será que alguém pode ser seguidor de Jesus e ser de esquerda ao mesmo tempo? Jesus era de esquerda ou de direita?
Em primeiro lugar, essa terminologia de “esquerda” e “direita” em relação com a política não existia nem fazia sentido na época em que Jesus viveu entre nós. Essa história de “esquerda” e “direita” no palavreado político só apareceu no século XVIII durante os acontecimentos da Revolução Francesa. Naquele momento, por uma razão meramente fortuita, os representantes das classes dominantes na Assembleia Constituinte da França revolucionária decidiram ocupar os assentos do lado direito do recinto parlamentar. Por sua vez, aqueles parlamentares que se identificavam com os interesses das maiorias trabalhadoras se instalaram na ala esquerda do local.
Ou seja, no lado direito estavam os que defendiam os latifundiários, os banqueiros, os grandes industriais, os grandes comerciantes e o alto clero. Do lado esquerdo ficavam os que se identificavam com os camponeses, com os operários, com os pequenos agricultores. Em outras palavras, o lado direito era dos agentes dos exploradores e ricos, no lado esquerdo estavam os representantes dos trabalhadores e pobres.
Portanto, mesmo que essa terminologia não existisse no tempo em que Jesus viveu entre nós, alguém poderia considerá-lo como um defensor dos ricos e opressores? Seria possível associar Jesus à direita? Seria inimaginável, não é mesmo? Porém, existem alguns pastores e padres bolsonaristas mal-intencionados que fazem isso. Esses deturpadores precisam ser desmascarados.
Não há dúvidas de que ninguém de boa índole concordaria que o nome de Che Guevara fosse associado aos defensores da causa do imperialismo. Há uma contradição gritante entre a figura histórica do guerrilheiro heroico e o significado maldoso do imperialismo.
Da mesma maneira, nenhum seguidor sincero de Jesus pode admitir que a imagem e o nome daquele que se entregou de corpo e alma à defesa da dignidade e da causa dos mais humildes sejam empunhados para dar apoio aos interesses mais sórdidos dos opressores do povo trabalhador. Nenhum seguidor do Jesus verdadeiro deve tolerar que o nome daquele que morreu pela paz, pela justiça e pela solidariedade seja utilizado para favorecer a prática da maldade, do racismo e da exploração.
Não é possível seguir a Jesus e ser bolsonarista. Só um hipócrita poderia aceitar isso.
*Jair de Souza é economista e mestre em linguística formado