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Quando a caça, exausta, deixa o presídio e vira caçador sagaz

Guilherme foi uma das pessoas mais interessantes que Fernando conheceu em sua vida. Ele o viu pela primeira vez nos anos 1980, quando o regime militar estrebuchava; militante ardoroso contra a ditadura, Gui estava recém-saído da cadeia, onde passara 3 anos.

Fisicamente, ele lembrava um anjinho barroco que tivesse adolescido e chegado à juventude. Era gordinho, de estatura média e cabelos crespos.

O traço mais marcante eram as bochechas, vermelhinhas, como se ele tivesse aplicado rouge. Conversar com Gui era uma delícia e uma aventura intelectual. Ideias ousadas se entrelaçavam a observações espirituosas, num encadeamento vertiginoso, de perder o fôlego. Gui e Fê, como se chamavam, passavam horas papeando, sobre política, literatura, cinema, futebol, mulheres, tanto fazia. Era sempre desafiador e gratificante.

Diante desse quadro, Fê e outros amigos concluíram, com uma pitada de inveja, que, dentre todos eles, Gui era o mais brilhante, aquele que iria deixar marcas mais fundas no seu tempo. Talvez como jornalista, a profissão de Fê e de vários outros; talvez como escritor, professor universitário ou quadro político. Bastava esperar e conferir.

Gui, porém, parecia não ter a menor pressa. Não procurava emprego, vivia com pouquíssima grana, deixava sua criatividade escoar pelas mesas dos bares paulistanos. Era como se, depois de uma prisão sombria, precisasse aquecer-se ao sol da liberdade, sem assumir compromisso algum, profissional, afetivo ou mesmo político.

Mas a criatividade sempre acaba por abrir um caminho para se expressar, e as contribuições de Gui para a cultura da capital paulista despontaram nos primeiros anos da Nova República. Foram anônimas, e ele jamais lhes assumiu a autoria.

Isso levou alguns filhos de uma égua a sustentar que não podiam ser dele, qualquer um com um mínimo de consciência de seu valor teria proclamado com orgulho a paternidade da coisa. Ainda assim, contrariando esses céticos mal-intencionados, os que o conheciam melhor afirmam que tamanha ousadia mesclada a um humor tão ferino só poderia ser fruto do espírito livre de Gui. Analistas de pinturas, que identificam em telas sem assinatura o estilo de composição, as misturas de pigmentos e mesmo o ritmo das pinceladas características de determinado artista, agem de modo não muito diferente.

A primeira obra-prima apareceu certa noite, em alguns muros paulistanos. Neles foi pichada, em letras garrafais, a frase “Dê o cu”. E logo abaixo, em letras um pouco menores, a segunda estrofe: “Não dá chabu”.

Era uma rima, talvez uma solução, mas não para Gui: ele era hétero de carteirinha. Depois de 3 anos de seca na prisão, saíra matando cachorro a grito, dando bom dia a cavalo, disposto a pegar geral, a passar na cara toda a mulherada. Os anos de liberdade não lhe diminuíram o apetite pelo fuzuê, muito ao contrário.

De qualquer modo, era uma evidência material de criatividade, e os mais chegados reconheceram, na pichação, a caligrafia de Gui. Ou afirmaram reconhecer, o que não altera coisa alguma nesta história.

A segunda obra-prima, ainda mais mordaz que a primeira, surgiu semanas depois. Dessa feita, o autor inspirou-se em uma propaganda habitualmente encontrada no exterior das pensões mais humildes. Não sei se a frase ainda é encontrada nas portas ou nas janelas desses estabelecimentos, escrita à mão em pequenas tábuas de madeira ou em simples pedaços de papelão; o fato foi que, certa manhã, os muros de diversos cemitérios da cidade ostentavam a inscrição pra lá de maldosa:

“Vagas para rapazes”.

Foi só isso. Não se conhecem outras criações de Guilherme, que, diga-se, subitamente desapareceu da movida paulistana. Ninguém sabe se está no exterior, em outro estado, ou se pura e simplesmente morreu – ou melhor, foi ocupar sua vaga. No entanto, quando Fernando se reúne com os amigos remanescentes (todos idosos, alguns já bateram as botas), lá pelas tantas alguém sempre pergunta:

– E o Gui?

A rigor, não é uma pergunta, não se pretende saber se alguém teve notícias dele, é claro que não. Trata-se antes, de uma homenagem, do pretexto para um brinde.

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