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Vagalumes Funerários II

Quando a morte do goleiro deixa artilheiros sem gosto de marcar

Publicado

Autor/Imagem:
Gilberto Motta - Texto e imagem

O pai chegou em casa meio endemoninhado. Era tarde de agosto e o mês do cachorro-louco acho que mexeu com ele.

“Vamos lá, pois o Tzíu morreu”- disse o pai.

Naquele tempo eu já estava acostumado com as loucuras de pedra e os rituais alucinados de nossos pais em relação aos velórios.

Tzíu era um negro mecânico e muito pobre; jogava no mesmo time de futebol que eu, o Bonsussesso – assim mesmo é que se escrevia, com tantos “esses” – mas o fato é que fomos lá: eu, o pai e o Divino.

Chegamos na Vila Indústria e a casa era lamentável: parava em pé por pura sorte. Logo na chegada o senhor Motinha foi saldado com urras de louvor. Ninguém de “figurão” foi lá ver o Tzíu; apenas o “seu” Motinha, o pai do Marinho e do Beto. E levamos, de quebra, o Divino. Ah! O Divino, sempre ele.

Percebemos algo grave logo na chegada: não havia caixão e o corpo do Tzíu estava sobre uma mesa de pernas bambas com quatro velas no entorno. Fiquei indignado; afinal, Tzíu salvara tantos gols contra o nosso time que o meu pai teria de fazer alguma coisa.

– Divino, vai lá no Ademir e manda ele trazer um caixão decente para o rapaz- ordenou o “seu” Motinha.

Saudades do pai, que nessas horas tinha a noção perfeita da dignidade humana,. Mesmo porque tratava-se de despachar o pobre Tzíu para uma melhor. O problema repousava novamente em confiar ao Divinão a tarefa mais importante.

Oito da manhã chega o Divino com o caixão, completamente bêbado e soltando rojões. Tentamos colocar o Tzíu dentro, mas devido aos efeitos do vinho barato ao longo da madrugada de velório, conseguimos apenas derrubar o corpo do esticado neguinho Tziu no chão de tábuas carcomidas. Horas depois, “embalamos” o Tzíu como presente aos céus, pois, sem dúvida, ele iria mesmo para lá.

Anos depois, o pai achava melhor não falar sobre esta história, pois eu tinha apenas 13 anos de idade e ele deveria ter me dado o melhor exemplo. E deu mesmo: humanidade.

Voltamos para o hotel; a mãe fez café, nos deu um beijo quentinho e colocamos o Divino para dormir. Ressacas de velórios são sempre as piores.

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