Parece que é teatro, mas dizem, em Provincianópolis, que foi verídico. O fato teria acontecido no dia da abertura inaugural de dois auditórios em cujas portas com fitas havia as placas: 1- Sala Marechal Deodoro da Fonseca; 2 – Sala Marechal Castelo Branco. Um grupo de pessoas aguardava em frente às salas.
Entre pessoas que vestiam roupas nas quais predominavam cores únicas como marrom, terracota e bege, por um lado, ou estampadas com melancias, por outro, sobressaiam dois homens trajando camisa preta e terno cinza – Capitão e Sr. Martin – e, usando verde e amarelo: a Sra. Dá Ares.
Tudo estava harmônico como um copo de leite até a chegada da Professora “X” Maria. Como se não bastasse ela estar usando roupa vermelha, logo foi esticando, abaixo dos nomes das salas, uma faixa na qual se lia “Abaixo os golpistas. Assinado Professora X Maria.”
Capitão (encarando a Professora X Maria) – Falo de minha própria experiência. A verdade, nada mais que a verdade. Nenhuma ficção. (Ergue a voz). Patriotas! E não golpistas.
Sr. Martin: Isso mesmo. A verdade nunca é encontrada nos livros escolares, principalmente nos de História. Há livros e livros que falam sobre essas coisas aí. Mas a verdade só é encontrada na vida dos homens de bem.
Capitão: Patriotas! E não golpistas. A minha experiência é propriedade exclusivamente minha. Só minha! Não foi do outro que me antecedeu. (Ergue a voz).
Dá Ares: Há livros e livros. Na Bíblia, só há verdades. No entanto, nos livros escolares, principalmente os de História e de Sociologia, nunca a verdade é encontrada.
Professora “X” Maria: Então, se nada ocorre por herança, posso concluir que o pai e a mãe do Capitão (com o devido respeito a ambos!) são personagens ficcionais?
Capitão: Dá Ares, tem como exorcizar essa bruxa comunista?
Dá Ares: Antes, vou tentar explicar. No mundo real existe experiência azul e experiência rosa. Já a vermelha é mera ficção.
Professora “X” Maria: Sr. Martin, se não existe verdade em nenhum livro, posso concluir que o senhor é ateu?
Sr. Martin: Capitão, dá pra enquadrar essa Professora? Ela tem que entender que não existe ficção no nosso gerenciamento e que experiência é técnica, é know how. Experiência não é safadeza! (Sr. Martin olha com ar repreensivo para a Professora “X” Maria).
Dá Ares: A Professora “X” Maria usa roupa de cor vermelha. O vermelho é de esquerda! A esquerda é do demônio. Capitão, tem como prender essa bruxa anarquista?
Professora “X” Maria: Dá Ares, você precisa de ajuda especializada. Experimentou certas situações no passado que hoje a impedem de participar da experiência compactuada. As narrativas tais como os mitos fundadores fazem parte da realidade compartilhada, mas que um dia foram ficcionais.
Dá Ares: Mito fundador é coisa de cumunista! A mitologia grega é de esquerda. Acupuntura, ioga, reiki, constelação familiar, dieta vegana é tudo de esquerda. O comunismo começou com a Revolução Francesa, liderada por…
Professora “X” Maria: a Revolução Francesa foi uma conquista da burguesia e o comunismo uma revolução do proletariado. Quem diz outra coisa só está interessado em espalhar fake news!
Sr. Martin: (voz de comando) O comunismo começou com a Revolução Francesa, liderada por…
Capitão (Interrompe Sr. Martin. Pigarreia para pedir a vez de falar). A Professora “X” Maria é uma mulher que deseja ter certas experiências!
Professora “X” Maria: Sim, amo as experiências prazerosas. Por exemplo: gosto muito de teatro. Vocês conhecem Ionesco?
Capitão (dirige-se ao Sr. Martin): Agora ela ainda inventa coisas querendo confundir a gente… UNESCO? Vem com essa de Organização das Nações Unidas… Está querendo dar uma de culta! Mulher que gosta dessas coisas tem moral duvidosa!
Professora “X” Maria: Eita! Lá vem mais chumbo! Eu não disse UNESCO, eu disse Ionesco. É nome de gente e não sigla de organização…
Sr. Martin: Só podia! O cara deve fazer show para mulheres.
Professora “X” Maria: Nada disso! Ele foi…
Sr. Martin (interrompe a Professora X Maria): Num falei! O cara foi… quer dizer: começou fazendo show para mulheres! E agora é empresário do ramo!
Professora “X” Maria: Mais respeito com Ionesco…
Sr. Martin: Num falei! O cara era explorador de mulheres! E essa mulher – que se diz professora – ainda defende…
Professora “X” Maria: Aprecio a obra de Ionesco e isso não é crime.
Capitão: Piorou! Se a professora gosta da “obra” é porque ele deve ser um comunista à toa! Então devo decretar prisão preventiva desse cara aí! (fala no celular) Avisa a todos os batalhões que estou procurando um tal de Ionesco. Profissão? Ramo de entretenimento.
Sr. Martin: Isso mesmo, Capitão! Sugiro que faça a comunistinha delatar o paradeiro daquele tal. Parece que é um sujeitinho que andava com uma Cantora Careca de atitudes suspeitas.
Capitão (atende o celular): O quê? O cara morreu faz 30 anos? Na França? Nunca morou no Brasil? Ok, positivo operante. Então vou ter que me contentar de prender somente essa professora aí? Que tal julgar esse Ionesco daí in memoriam? Já está declarada a prisão preventiva dela e ele será julgado por atentado aos bons costumes e crime de lesa pátria, talquei?
Professora “X” Maria: Que absurdo! Ionesco é o autor da peça teatral A Cantora Careca. Estão todos muito tensos! Para acalmar os ânimos vamos fazer um debate. Esse lado do grupo (apontando a direita) é verde-amarelo e o outro (apontando a esquerda) é vermelho. Vou esperar cinco minutos para que escolham um lado.
Capitão: Isso aí de debate é contra a pátria! É proibido instigar polêmica!
Dá Ares: (arranca a faixa com os dizeres ” Abaixo os golpistas. Assinado Professora X Maria”. Grita): Abaixo os comunistas!
Sr. Martin: Capitão, sugiro prender essa professora.
Dá Ares: Hunh, hunh! Orei e me foi revelado que ela teria um caso… ou criaria um caso… com esse tal de Ionesco. Mas uma coisa é certa: isso é péssimo para o país.
Capitão: Vou prender essa professora daí em nome da Lei e da Ordem!
Professora “X” Maria: Qual Lei e qual Ordem, Capitão?
Capitão: Lei do Mais Forte! E Ordem dos Templários!
Professora “X” Maria (algemada, grita): Dia virá que esses fatos serão investigados como “crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, associação criminosa, incitação ao crime”. Vou recomendar um livro pra você. O título é Constituição Federal. É muito bom! Não vale ler só quatro linhas! Quando tiver terminado de ler na íntegra, aguarde setenta e duas horas… e leia de novo!
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(O setênio, Tãolivros, 2024, pp 67-73)