Shirley e William estavam casados há dois anos. Ainda não tinham filhos e viviam numa perpétua lua de mel. “Seria perfeito se ele não fosse tão apegado à mãe”, pensava sempre a jovem. “Aquela vaca me trata mal por ser filha de imigrantes!”.
Certa noite, depois do jantar, os dois foram pra cama e fizeram um amorzinho gostoso. De repente, Shirley se viu deitada no chão, com o corpo todo dolorido, enquanto William a sacudia e repetia sem parar o seu nome.
– Que a-aconteceu? – perguntou, aturdida.
– Eu é que pergunto! – respondeu ele, num tom entre ansioso e irritado. – Você não lembra de nada? – diante do olhar atônito de Shirley, explicou:
– Depois que a gente transou, você foi ao banheiro. Voltou com um punhal na mão, gritando palavras sem nexo, e me atacou! Segurei sua mão, você não me feriu, mas não consegui desarmá-la. De repente você largou a arma e tombou, em convulsões. – Afagando-lhe o rosto, indagou:
– Querida, que palavras eram aquelas, de que língua? Por que me atacou? Por que havia um punhal no banheiro?
Ela tentou retribuir a carícia, mas não conseguiu erguer o braço, pesava demais.
– Não lembro de nada, amor, juro. Mas aquilo – e olhou para o objeto caído no chão – não é um punhal, é um abridor de cartas. Está na minha família há muitas gerações. Não faço a menor ideia de como foi parar no banheiro…
No dia seguinte, ao sair do trabalho, William foi direto para a casa da mãe e contou-lhe o ocorrido. A velha ouviu tudo em silêncio, os lábios apertados em desaprovação.
– Eu sabia que aquela vagabunda não prestava! – explodiu quando o filho enfim se calou. – É uma estrangeira, não conhece nossas tradições! – Retomou o fôlego e prosseguiu:
– Está possuída por demônios, tenho certeza! Leve-a amanhã ao templo que o pastor vai exorcizá-la, expulsar os espíritos imundos. – E ordenou, inflexível. – Mas, até que isso aconteça, não se aproxime daquela … você vai dormir aqui!
William foi pra casa e, meio em graça, contou à esposa a exigência da mãe. Shirley chorou, disse que aquilo nunca mais aconteceria, que eles poderiam continuar a ser felizes, mas ele foi inflexível.
– Você vai ao templo amanhã. Só volto a tocá-la depois de o pastor expulsar os demônios! – E saiu, para dormir no ninho materno.
A jovem resignou-se e, no dia seguinte, acompanhou o marido ao templo. Ao entrar, suportou o olhar de desprezo das devotas. Mas quando o pastor a chamou de “pecadora que se ofereceu ao diabo e se abriu para ele”, foi demais. Libertou-se de William com um safanão e correu para fora. Quando olhou para trás, as lágrimas nos olhos não a impediram de ver, na porta do templo, seu amor, que a xingava aos berros, ao lado da megera, que sorria triunfante.
Shirley correu para a casa da mãe e, aos prantos, contou-lhe tudo. A velha ouviu em silêncio, enquanto acariciava os cabelos da filha. No final, falou:
– Isso não me surpreende, tinha medo de que acontecesse algum dia. – E, pegando-a pelo braço – Venha comigo, vou levá-la à única pessoa que pode ajudá-la agora.
Uma hora depois, chegaram a um sítio cheio de árvores, na periferia urbana. A mãe de Shirley identificou-se e obteve permissão para entrar. Foram recebidas por uma mulher bastante idosa, cujo olhar brilhava de poder espiritual. Shirley contou-lhe toda a história, e a velha explicou:
– A Mãe a chamou, você vai ter de ficar aqui e desenvolver sua espiritualidade. Serão seis meses de reclusão, na minha companhia e na de suas irmãs. Você aceita?
Sem alternativa, a jovem concordou. Despediu-se da mãe e iniciou uma nova vida.
Cada dia daqueles seis meses trouxe provas difíceis, que fortaleceram o caráter e a determinação de Shirley. No último dia, a velha a conduziu a uma sala onde jamais havia entrado, decorada em tons vermelhos, tendo ao centro uma imagem coberta por um pano. Sentaram-se em almofadas dispostas pelo chão. A mestra sorriu para a discípula e falou:
– Querida, você concluiu seu noviciado, é uma verdadeira filha da deusa, não mais minha aprendiz, é minha irmã! – Dando uma guinada na conversa, observou: – A Mãe é exigente, nosso ritual de formação é doloroso e difícil. Morro de rir com as iniciações do candomblé da Nigéria, do vodu do Daomé, da roda moçambicana, parecem brincadeira de criança diante da nossa! Mas não estamos na Nigéria, no Daomé ou em Moçambique. Estamos na África do Sul, pertencemos à minoria hindu e cultuamos divindades muito mais antigas que os deuses africanos. E muito mais poderosas!
Shirley ouvia em silêncio, quase sem respirar. A velha prosseguiu:
– Mil vezes você me perguntou o nome daquela que chamamos simplesmente de Mãe. Nunca respondi. É hora de ser apresentada a ela!
Pegando a jovem pela mão, dirigiu-se com ela para junto da estátua e puxou o pano. Surgiu a imagem de uma entidade feminina de pele azul-escura, com o corpo coberto de serpentes, em vez de roupas, e que trazia ao pescoço um colar de crânios humanos.
– Seu nome é Kali, destruidora de demônios, deusa da destruição e do renascimento. – Olhou para a moça com um misto de respeito e comiseração e continuou – A alguns de seus filhos, pede apenas orações e flores, mas a deusa em você é poderosa, e ela quer mais! – E continuou, quase num sussurro:
– Há séculos que sua família serve a Mãe. Antepassados seus estiveram entre os tugues, que ofereciam a Kali vidas humanas, em especial dos odiados colonizadores britânicos. Ela lhe pede a mesma coisa. Você já tem o punhal. Suplico-lhe, não ignore o pedido dessa mãe exigente! Ofereça-lhe uma morte por ano, e você terá para sempre a proteção de Kali!
Shirley não respondeu de início. Aos poucos, porém, a sugestão de um sorriso aflorou em seus lábios. Já sabia quais seriam as primeiras oferendas: a vaca da mãe de William e depois ele, que a havia abandonado!
– Sim –, murmurou. E saiu da sala e do templo, sentindo-se livre e poderosa.