O que vai restar do que se conhecia antes da pandemia de coronavírus? No mundo todo, projeções têm buscado dar algum tipo de desenho ao imprevisível, mas esbarra-se em um desconhecimento global. É possível conhecer, porém, o que diz respeito aos nossos limites e esgotamentos como sujeitos, destaca o filósofo italiano Franco “Bifo” Berardi.
O corpo, muitas vezes tratado como um aparelho infalível, experimenta uma ameaça de proporções assustadoras, atualizada a cada morte provocada pelo vírus ou pelo tumulto que ele gera nos sistemas de saúde. “Não vai ficar mais fácil após o término do isolamento; [viver] será muito mais difícil e duro. Deveríamos olhar para essa dificuldade pelo ponto de vista dessa nova consciência que o isolamento gerou: consciência da mortalidade e da fragilidade do corpo.”
Em seus livros Asfixia e Depois do Futuro, ambos publicados pela Editora Ubu, o intelectual de esquerda discute o atravessamento do modelo financeiro-tecnológico nas relações humanas e sociais, e as resistências empreendidas por agrupamentos públicos e pela arte.
Um argumento comum costura as duas publicações: é preciso corpo e afeto para dar novo significado ao tecido social e às interações coletivas – promover mais encontros e menos fragmentação. Por isso, ele convoca com frequência a noção de erotismo para falar de uma retomada prazerosa da convivência com o outro, a despeito da aridez e agressividade vigentes nas conexões atuais.
Se em 2011 o movimento Occupy Wall Street, que denunciava a desigualdade social, entre outros problemas, despontava para o autor como uma promissora reativação a dimensão pública urbana, os anos seguintes foram de frustração. E mais ainda agora na pandemia. “Agora, o corpo é diretamente agredido pelo vírus, pelo isolamento obrigatório e pelo distanciamento social.”
Ativista dos movimentos estudantis europeus de Maio de 1968 e comentador da vida contemporânea, Berardi mantém um diário sobre os efeitos da covid-19 no mundo. O prognóstico é preocupante e inclui grande sofrimento mental.
Para ele, os efeitos da pandemia podem levar a dois destinos diferentes: “Podemos entrar em um período de miséria física ilimitada, de deserotização absoluta das relações sociais, um período de sofrimento mental generalizado”, afirma, em perspectiva pessimista.
Mas Bifo propõe também uma saída construtiva, em que as pessoas podem “redescobrir a necessidade da solidariedade, abandonar o espírito de competição agressiva e sair do medo do contágio com um desejo renovado de contato corporal”.
Uma das mudanças já percebidas pela sociedade é a transformação da relação com o tempo – tanto na aceleração quanto na desaceleração.
Quando assistiu, em janeiro, ao filme de Ken Loach Você Não Estava Aqui?, que retrata a falta de assistência aos informais que trabalham com entregas, o filósofo italiano concluiu que a ansiedade, o desespero, a agressividade e a frustração são “um fardo da miséria psíquica que o modo de vida neoliberal provocou e de que nunca seremos capazes de nos libertar”.
O autor analisa que o ritmo alucinado de trabalho, vivências e relações cultivado nas últimas décadas era intolerável, mas vinha sendo tolerado. Parecia não haver outras formas de viver – até que a pandemia de coronavírus irrompeu e impôs limites a um corpo que era tratado como máquina de exploração.
“Veio o isolamento e, de repente, a aceleração infernal foi interrompida. Agora estamos diante da possibilidade de sair do inferno, de reformular todo o sistema de expectativas. Seremos capazes de resistir à pressão capitalista que nos quer de volta àquele carrossel de antes?”
Ainda que o isolamento social tenha instituído outras rotinas e ritmos à maioria das pessoas, os trabalhadores considerados essenciais ficaram foram dessa possibilidade, “obrigados a continuar trabalhando cada vez mais rápido”, como destaca Bifo. A eles foi reservada a aceleração do tempo.
Os dados endossam a afirmação do filósofo. Em levantamento realizado por pesquisadores brasileiros, entregadores por aplicativos afirmaram que, apesar de o trabalho ter sido maior na pandemia, houve “redução significativa” do salário.
Trabalhos precários
As relações de trabalho têm passado por uma precarização perigosa, na avaliação do pensador italiano. Renegociações feitas devido à pandemia podem ir além dos momentos de exceção e instituir uma fragilização naturalizada.
“A explosão do desemprego criará a condição para um tremendo agravamento da situação social: miséria generalizada, agressividade, conflitos, violência, guerra. Isso é fácil de prever, é quase óbvio. A única saída de uma catástrofe sem fim é uma mudança radical na relação entre atividade social e acesso às necessidades básicas da vida.”
“Acho que a verdadeira mudança não deve ocorrer na posição política dos Estados, mas na capacidade da sociedade de se organizar fora das formas dominantes. Auto-organização da produção, principalmente da produção de alimentos, e redistribuição de riqueza.”
‘As pessoas estão produzindo arte e poesia durante o confinamento. Vejo essa ampla atividade de escrever e gravar imagens (por mais fragmentárias que sejam) como uma espécie de tentativa de encontrar um ritmo comum, uma tentativa de reconstruir o tecido da sensibilidade’
Sobre isso, o filósofo não nega que as tensões dos próximos anos serão violentas, na medida em que haverá recusa, de alguns, na redistribuição.
Enquanto as desigualdades refletem um processo de expansão e de acúmulo que favorece apenas uma pequena parte da população – dados das Nações Unidas de 2019 demonstram que a América Latina é a região do mundo com a maior desigualdade de renda -, o crescimento não tem se revertido necessariamente na expansão de coisas úteis e prazerosas.
Para Bifo, a resultante é uma aceleração do processo de extração e a destruição de recursos físicos e mentais. “A obsessão econômica e financeira por crescer e o impulso persistente de ter mais, de acumular valor abstrato, não estão funcionando.”
Ele não tem dúvidas de que a pandemia esteja expondo a “fragilidade do sistema monetário”, baseado em dinheiro imaginário e especulação financeira. Há capital circulando entre alguns. “Mas, no momento, o que precisamos não é de dinheiro, mas de coisas úteis como ventiladores, máscaras, alimentos, afeto.”
Bifo argumenta ainda que o dinheiro disponibilizado por bancos centrais e instituições financeiras internacionais é revertido ao modelo capitalista e consumista, com forte impacto no endividamento da população.
“É uma experiência bem conhecida: desde os anos 1990, nos EUA, na Europa e na América Latina, a ampla disponibilidade de cartões de crédito (dinheiro eletrônico) permitiu uma expansão do consumo, mas isso implicou na criação de uma dívida que resultou na sujeição crescente das pessoas. A dívida atuou como o principal fator de dependência social e obrigou os trabalhadores a aceitar qualquer tipo de chantagem, precariedade, salário baixo etc.”
Enfrentamento da pandemia
Questionado sobre a recusa à ciência de parte da população diante do maior desafio desde a Segunda Guerra Mundial, Bifo lembra que o próprio fato de vivermos um acontecimento sanitário como este no século 21 demonstra que “a ciência está longe de ser infalível”. A ciência de fato avança e alarga fronteiras sempre que novas perguntas são feitas, levando à produção de mais respostas. “Certo grau de ceticismo é legítimo”, ele opina.
Feita a provocação, ele ressalta que é a busca científica a nossa arma contra os problemas impostos pela covid-19. “O conhecimento é a única ferramenta que temos contra o vírus e também contra qualquer tipo de perigo. Portanto, é difícil entender como alguns grupos não minoritários de pessoas podem ser tão absurda e teimosamente negacionistas.”
Sem recusar a melancolia e as crises intensificadas pela pandemia, Bifo também vislumbra possibilidades de vida que incluam a poesia, o sonho com o futuro e a reinvenção das relações. O filósofo explica que o isolamento e as consequências dele permitirão que olhemos para outras possibilidades de nos relacionar. “Nos últimos 40 anos, ficamos paralisados, persuadidos de que não havia alternativa; mas agora ela se impôs, pelo menos por um período.”
“As pessoas estão produzindo arte e poesia durante o confinamento. Vejo essa ampla atividade de escrever e gravar imagens (por mais fragmentárias que sejam) como uma espécie de tentativa de encontrar um ritmo comum, uma tentativa de reconstruir o tecido da sensibilidade.”