Lionel Balout, arqueólogo, etnólogo, professor e diretor do Museu Nacional de História Natural, em Paris, define que, para o pré-historiador, existe um limiar técnico que abre o caminho do humano. É quando a manufatura não se deveu a qualquer causa natural, não foi, por exemplo, a lasca de uma pedra que desabou, e que esta ação ocorreu cronologicamente primeiro, não se aponta a mais remota evidência de outra similar, anterior. Tratam-se do “como” e do “quando”.
Balout está precisando o momento da história do homem em que, com segurança, o antropólogo está diante do homem, um ser capaz de sobreviver, se defender e progredir.
Lembremos que este homem surgiu na parte oriental da África, por volta de três milhões de anos, como animal de postura ereta e fabricante de utensílios. E irá ocupando a África, migrar para o Oriente Médio, a Ásia Menor, a Europa, lutará com a última glaciação, Würn, há 150 mil anos, e se espalhará por toda Terra.
Mircea Eliade, cientista das religiões, mitólogo e romancista romeno, escreve em sua famosa obra “Histoire des Croyances et des Idées Religieuses” (1976): “mesmo antes da linguagem articulada, a voz humana era não só capaz de transmitir informações, ordens ou desejos, mas de criar todo um universo imaginário por suas explosões sonoras e inovações fônicas” e transfere do mundo sonoro para o pictórico para “visualização das sílabas místicas”.
Há verdadeiramente que se fazer um grande esforço para descobrir algo além da luta pela vida, contra a natureza, a fauna que também se renova e evolui, as condições nem sempre fáceis de prover alimento e abrigo, esta “sílaba mística”.
Existe, ainda, outra questão levantada pelos arqueólogos e antropólogos. O homem ereto, que produziu ferramenta, não surgiu de uma linha evolutiva que se aprimorou constantemente. Muitos seres animais e vegetais, terrestres e marinhos, no correr de milhões de ano, surgiram e desapareceram, em imensa maioria sem deixar vestígios maiores do que a formação do petróleo. Deus inundaria a Terra de seres apenas para que tivéssemos petróleo, e somente a pouco menos de dois séculos?
Examinemos, um pouco mais a história dos homens e da sua dispersão pelo planeta. Os modos de vida fornecem o fundamento de qualquer interpretação que se faça da história.
Tomem-se os “han”; a etnia mais numerosa e dispersa na República Popular da China (China). A geografia favorece e impõe limites ao desenvolvimento da vida. As possibilidades da evolução tecnológica, ampliando os espaços de ocupação humana, não estão em contradição com aquelas habilidades que conduziram as primeiras migrações pelo Planeta. Porém a primeira e mais premente necessidade humana é, sempre foi, a alimentação. As possibilidades de coleta, caça e pesca constituíram impulsos vitais para a ocupação dos continentes.
No entanto, quando se buscam as “sílabas místicas”, podemos cair na falácia do prêmio Nobel de literatura (1927), judeu francês, reverenciado pelo catolicismo, Henri Bergson, para quem o verdadeiro conhecimento não advém de conceitos abstratos, do intelecto, racionalmente, mas na apreensão imediata, da intuição, evidenciada pela experiência interior.
De sua obra de 1932, “As Duas Fontes da Moral e da Religião”, lê-se, logo no início: “A recordação do fruto proibido é o que há de mais antigo na memória de cada um de nós, como na da humanidade” (sic).
Jacques Gernet, eminente sinólogo francês, membro do Collège de France, escreve: “como noutras partes do mundo, na China foram as formas mais evoluídas da agricultura que permitiram os maiores crescimentos demográficos, a constituição de reservas importantes e a formação de Estados organizados” (“O Mundo Chinês”, tradução de José Manuel da Silveira Lopes para Edições Cosmos, Lisboa, 1974).
Tendo surgido na África, é bastante natural que a primeira civilização humana, no sentido de corpo de dirigentes e população, se tenha constituído nesse continente. Porém muitos séculos se passaram antes que houvesse a necessidade desta coexistência. Houve migrações mal sucedidas pelas glaciações, houve também ocupações prejudicadas por secas e inundações, até que a sequência de fontes de água, no sentido sul-norte, conduziu os humanos para o entorno do rio Nilo.
Se o prezado leitor observar o mapa físico da África, ficará evidente que o mais longo curso d’água, e único a cortar mais da metade do Continente, no sentido sul-norte, tem início no Lago Vitória e conclui no Mar Mediterrâneo. É o rio Nilo. Quase todos demais e maiores cursos d’água correm de leste para oeste ou vice-versa: o Orange, o Limpopo, o Cubango, o Zambeze, o Congo e o Níger.
Portanto, como enfatiza Jacques Gernet, mais uma vez a geografia conduz a humanidade. E o prosseguirá fazendo na relação dialética que o ser humano e seu redor, o meio ambiente, desenvolvem, formando culturas únicas, pois as naturezas são diversificadas e orientam a pesquisa dos homens.
Alberto Malet (1864-1915), professor de história francês, observa que os primeiros povos buscaram os rios que lhes asseguravam alimento e material para habitações: Eufrates, Tigre, Ganges, Yang-Tse e Huang-He, Mekong, Danúbio, Reno, Marañón-Amazonas, em todos continentes.
No caso específico do rio Nilo, Malet afirma que a inundação e sua regularidade provocavam a admiração dos egípcios, que desconheciam as fontes do rio, os lagos equatoriais Vitória e Albert, os fenômenos pluviais, mas aproveitavam para cultivar e defender os territórios ribeirinhos.
Os egípcios eram politeístas. Tinham muitos deuses, com formas diferentes, que acreditavam proteger locais, populações e fenômenos que eles não compreendiam. Uma das formações das divindades tem origem na ignorância. Isso não ocorrerá somente nas religiões politeístas, porém com religiões monoteístas.
É preciso separar o que constitui a crença em divindades do que significa respeito à ancestralidade ou seguir uma ética de vida. Na China de hoje, conforme levantamento de 2010, 52,2% se declaram “sem religião”. Vem do realismo lavrador, que conhece as manifestações da natureza, sabe ler o tempo de seca e de chuva, e não se deixa influenciar por pensamentos mágicos.
Em segundo, vêm 21,9% que cultuam seus ancestrais. Por terceiro, os budistas, 18,2%, que seguem o pensador nepalês Sidarta Gautama. Portanto, antes de se computar os 5,1% de católicos, 92,3% da população não acredita em deuses ou Deus.
Além da ignorância, o poder é outra fonte mística. Os faraós egípcios eram deuses, para quem se construíam moradas monumentais, pois viveriam em outra realidade e voltariam para Terra, este mundo.
Temos, assim, genericamente, as duas vertentes formadoras da religião: o desconhecimento, que leva a imputar a ser superior a produção, em todos sentidos, do que acontece fora da possibilidade humana, e a distância dos demais que o poder necessita para não ser incomodado, substituído.
Pode-se também concluir que, se o homem surgiu, no processo evolutivo das espécies, na África, as religiões tiveram igualmente origem africana.
Se, ao ocupar o mundo, os homens foram criando deuses, era previsível que, em algum instante do processo de formação de suas civilizações, também se unificassem não só pelas origens mas pelos deuses. O que teve Roma de notável nesta construção civilizatória foi a lei – a cidadania romana que extrapolava a raça e o local de nascimento.
Há cerca de 4.000 anos, um grupo semita, os hebreus, criaram um Deus só para eles. Havia uma razão. Examinemos o mundo há 2.000 anos antes da Era Cristã. A quase totalidade era ocupada por coletores-caçadores nômades e por incipientes agricultores.
Exceto pela província de Zhejiang, no extremo oriental da Ásia, voltada para o Mar da China, no Oceano Pacífico, apenas no curso do rio Nilo e no Oriente Médio, avançando pela atual Turquia, se desenvolviam reinos ou estados-cidades.
Eram os sumérios, com civilização comparável à egípcia, na Mesopotâmia, os fenícios, caracterizados por navegantes e comerciantes, e aqueles espremidos entre estes poderosos: os hebreus, povo semita.
Estes últimos tiveram a criatividade de criar um Deus só para eles: Jeová, o Deus do povo escolhido, que, se não lhes dava força bélica, não os colocava inferiores aos vizinhos. E trataram de construir sua história em cinco livros, o pentateuco, a que denominaram Torá, a Lei.
Esta arrogância não constituiu exércitos, ou fabricou armas mais possantes, porém deu aos judeus a unidade, que ainda hoje existe, para constituir o povo que não se miscigena, se excluiu da comunhão com os demais.
E esta religião, por eles criadas, veio a se desenvolver naquelas que maior número de mortes provocou na espécie humana: a cristã e a islâmica.
A história do cristianismo, antes e depois da Reforma Protestante, liderada pelo padre alemão Martinho Lutero, é de guerras pelos mais diferentes motivos, mas, sempre, em nome de Deus: as cruzadas, as inquisições, o massacre dos astecas e povos ameríndios, além das excomunhões, que excluíam parcelas da inteligência do convívio das sociedades.
Os protestantes direcionaram-se para as novas condições econômicas advindas com a inicial colonização da Europa nas Américas e, daí, pelo restante do mundo. Poder-se-ia conceituar que o protestantismo é a religião do capitalismo, sendo os neopentecostais, seu braço mais recente, o segmento neoliberal, que domina o mundo ocidental e se infiltra pelo planeta a partir de 1980.
Deve-se, no entanto, não cair na identidade da religião e filosofia. John Hick, da Universidade de Birminghan, professor nos EUA e na Grã-Bretanha, em palestra em 2005, tratando da diversidade religiosa, perguntava por que isso constituiria um problema filosófico. E ao enumerar as verdades, que as religiões sempre pensam ser apenas as suas, misturava judeus, cristãos com budistas e taoístas.
Ora, caros leitores, o “Tao”, de Lao Zi, logo na primeira sentença estabelece a diferença conceitual. Ele trata do corpo, de uma substância, não de uma função ou uso. O caminho – Tao – é a imagem do conhecimento, que o corpo percorre para apreender, entender a realidade. Tao é também por palavras, pelo falar, um modo de como o caminho pode também ser compreendido: como (dis)correr.
Onde está o sobrenatural, o místico na frase, em nossa tradução imperfeita: “os caminhos sobre que se pode discorrer”? Apenas na linguagem difere da usual no ocidente.
O budismo também não é religião, é filosofia de vida.
Mas por que a Igreja Católica, riquíssima, construiu monumentos arquitetônicos, verdadeiras obras de arte, pelo mundo? Chegou a ter o Banco do Vaticano, agora fora das manchetes, após o escândalo da associação com a máfia e negócios imobiliários e pela ação enérgica e discreta do atual Papa Francisco.
O que dizer então das designações protestantes, com muito mais facilidade de surgir e desaparecer, como um comércio de bairro.
Há 10 anos, a revista IstoÉ, mostrava que “A Igreja Bola de Neve Church se inseriu no mercado das igrejas evangélicas brasileiras sob a aura de uma instituição religiosa amparada por uma embalagem contemporânea e liberal. É assim desde 1999, quando o surfista Rinaldo Luiz de Seixas, 41 anos, o apóstolo Rina, transformou em púlpito a prancha de surfe e abriu as portas de suas unidades, que hoje somam cerca de 200 e têm 60 mil fiéis”. E, adiante, descreve a plateia: “composta majoritariamente por jovens de classe média e alta, em sua maioria internautas e fãs de gêneros musicais como reggae, rock, rap e hip-hop, ganhou evidência a filosofia de conduta conservadora com que a denominação tenta controlar o cotidiano de seus fiéis. Os pastores interferem nas escolhas dos parceiros amorosos e chegam a sugerir uma cartilha ‘informal’ sobre posições sexuais permitidas”.
Ao entrar no ramo de negócios, a igreja também entrou na área do lucro e das falsidades. Afinal não são apenas necessários os fiéis, mas o ganho financeiro e o poder político. Ao lado das bancadas legislativas da bola (esporte), do boi (ruralista), da bala (armamentista), surge a da bíblia (religiosa), todas de caráter conservador e reivindicando privilégios ao Poder Executivo.
As religiões foram instrumentos de aprisionamento dos pobres e mantiveram a escravidão por séculos. Expandiram-se pelo mundo aliando-se aos poderes locais. Responderam, ainda respondem, veja Gaza, pela morte e sofrimento humano. E querem que o trabalhador, que contribui para o progresso da nação pague impostos, mas os bilionários bispos Macedo e seus colegas de profissão estejam isentos dos ganhos milionários.