Abaixo o retrocesso
Quem (e por quê) quer a volta do voto impresso?
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emO presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores não escondem que têm medo de tudo que possa esclarecer às pessoas: imprensa, ciência e educação. Quem não faz parte do rebanho tem de se manter alheio, acreditando em fantasias e em fake news. O argumento preventivo do momento é o voto impresso. Que falta faz? Nenhuma, conforme o ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) e ex-presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Nelson de Azevedo Jobim, mostrou à Câmara e ao Senado durante audiência pública em 2004. Jair Bolsonaro era deputado federal e certamente ouviu as explicações de Jobim. Mesmo bem informado, dias depois da inquestionável derrota de Donald Trump para Joe Biden, o capitão, agora presidente da República, retomou sua mais antiga pauta, estabelecendo um paralelo com possíveis contestações dos resultados eleitorais no Brasil em 2022.
A avalanche de propostas ideológicas para votação no Congresso ainda este ano inclui, a pedido do ocupante do Palácio do Planalto, a chamada pauta de costume. Ela foi prometida aos apoiadores desde o lançamento da campanha, em 2017. Uma dessas proposições é a facilidade para posse e porte de armas de fogo. Entretanto, embora o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirme que a prioridade da pauta será baseada no trinômio saúde pública, desenvolvimento social e crescimento econômico, a recomendação do Centrão, que hoje comanda as duas casas do Parlamento, deve ser a retomada do voto impresso. Não será tarefa das mais fáceis para as excelências que habitam um dos vértices da Praça dos Três Poderes.
Do outro, as excelências de toga lembram diariamente que, em 2002, algumas cidades brasileiras contaram com a impressão do voto. A forma encontrada pelos técnicos do TSE foi acoplar uma caríssima e ineficaz engenhoca à urna eletrônica. À época, Nelson Jobim percorreu o país com um relatório embaixo do braço, mostrando a eleitores, advogados, juízes e parlamentares que, além de caro, o processo era confuso e não agregava segurança alguma à urna eletrônica. Depois de toda falação sobre o tema e com o sistema consolidado e copiado por numerosos países, a quem ainda interessa o retorno do voto impresso? Claro que exclusivamente ao presidente Jair Bolsonaro e apoiadores, que, sem qualquer prova, insistem com a pregação de que houve fraude nas eleições dos Estados Unidos, onde nenhum debate envolveu a votação eletrônica. A maioria dos norte-americanos ainda vota em cédula de papel.
Reunindo fanáticos em defesa do magnata estadunidense, o presidente brasileiro afirmou, em novembro passado, que “se nós não tivermos o voto impresso em 2022, uma maneira de auditar o voto, vamos ter problema pior do que os Estados Unidos”. Na mesma oportunidade, defendeu a análise do tema pelo Congresso Nacional. Na prática, o que Bolsonaro quer é a aprovação de uma proposta de emenda à Constituição (PEC) sugerida pela deputada Bia Kicis (PSL-DF), apoiadora de primeira hora do governo do capitão e candidatíssima à presidência da Comissão de Constituição e Justiça da Casa. O que se comenta nos bastidores palacianos é que a defesa do voto impresso não significa o retorno das cédulas de papel, mas um modelo híbrido, com voto na própria urna eletrônica.
Qual a diferença? Especialistas asseguram que nenhuma, porque, após a confirmação de cada voto, ocorreria a mesma impressão para uma segunda verificação do eleitor e o consequente depósito em uma urna física. Até os mais leigos em informática sabem que, atualmente, essa auditagem é possível por meio de boletins da urna eletrônica, instituída pelo TSE na presidência do ministro Carlos Mário da Silva Velloso. Bolsonarista de carteira assinada e firma reconhecida, mas com extenso e reconhecido currículo de feitos técnicos em benefício da Justiça Eleitoral, um dos “pais” do sistema eletrônico de votação pode ser consultado pelo mandatário da nação, inclusive para ser lembrado que ele (o presidente) já defendeu a informatização das eleições.
Espera-se que, nessa nova função de repassador de fake news, o técnico não desminta os livros que publicou, muito menos esqueça das centenas de entrevistas concedidas para atestar a lisura do processo, a isenção dos técnicos e a segurança da urna eletrônica. Tudo indica que o discurso do momento em favor do retrocesso se tornou vital para as pretensões de reeleição do capitão. Logo ele que, pelo menos desde 1998, é eleito com votos contados eletronicamente. Além de Bolsonaro, somente Leonel Brizola e o deputado paraense Gerson Peres tinham essa mania de questionar, sem provas, o sistema inventado pelo Brasil para concluir uma eleição geral duas ou três horas após a digitação do último voto.
Apenas para ilustrar, nos Estados Unidos, o maior e mais rico país do mundo, o resultado leva dias, semanas, às vezes meses para ser conhecido. Como até hoje nada se provou no atacado dos pleitos nacionais, por que a preocupação de alguns, inclusive de Jair Bolsonaro, de recorrer ao varejo de uma eleição importante como essa que se avizinha? Ninguém imagina. Interessante é lembrar uma velha e bolorenta eleição de papel. Tenho o recorte de uma matéria publicada dia 17 de novembro de 1994 no imortal Jornal do Brasil, informando sobre fraudes na 24ª. Zona Eleitoral do município do Rio de Janeiro.
Na véspera, o juiz eleitoral Nélson Carvalhal havia descoberto quatro cédulas falsas que beneficiavam os então candidatos a deputado federal Jair Bolsonaro (PPR), Álvaro Valle (PL), Vanessa Felipe e Francisco Silva (PP). Conforme o registro, as cédulas, feitas em papel mais fino, foram apreendidas e nenhuma linha foi escrita em desabono à conduta dos quatro candidatos. Por essa e outras, recuperar o voto impresso é improvável, inviável e inegociável para os ministros do TSE. A última tentativa de reintroduzir a impressão do voto ocorreu em 2015, quando o deputado Jair Bolsonaro conseguiu aprovar uma emenda à minirreforma eleitoral. Aprovada no Congresso, a medida acabou derrubada no Supremo Tribunal Federal, que, em 2018, a considerou inconstitucional.
Insistir no tema denota antecipadamente duas situações: medo de perder ou falta de discursos mais consistentes para convencer o eleitorado de que ele é o melhor para o país. Nessa complicada tarefa de convencimento está inserido um balaio de milhões de eleitores que o escolheu – mas já se arrependeu – apenas para não votar naquele outro que havia pilhado os cofres públicos. Os tempos são outros. O feio não parecia tão ruim assim. No entanto, o bonito só pensa naquilo: nos amordaçar, controlar e impedir que rezemos por cartilha distinta. É fato que o presidente está se preparando para, em caso de derrota, fazer o mesmo ou pior do que Trump em 2022.
Não seria interessante aprovar a impressão do voto e o código aberto na programação da urna eletrônica, de modo a deixá-lo preventivamente sem o argumento? Desnecessário, à medida que os fatos já engoliram os fakes contrários à urna eletrônica. Para os ministros da Corte eleitoral, está provado que a fórmula da água benta é mesmo HDeusO. Portanto, o capitão pode sonhar até acordado com a ausência de adversários. Quanto ao retrocesso do voto impresso, nem tossindo. A quem interessa alterar uma metodologia que é posta à prova sistematicamente e que nunca mostrou vulnerabilidade alguma? Obviamente aos que têm medo. Por mais que tentemos parecer corajosos, todos sentimos medo de alguma coisa. Daí aquela máxima do dicionário informal: quem tem.. tem medo.