Análise do Lowy Institute, centro de estudos baseado em Sydney, na Austrália, revelou que o Brasil teve a pior gestão pública durante a pandemia, ocupando a última posição entre 98 governos avaliados. A Nova Zelândia, cuja presidente acaba de ser reeleita, foi o país que melhor lidou com a crise sanitária. Mesmo com o título nada agradável e com a alta de casos e de mortes por Covid-19, o presidente da República, na contramão dos diagnósticos de especialistas, continua minimizando o vírus. Demagogicamente, busca espaços públicos para criticar medidas de isolamento sugeridas por governadores. Enquanto brincam com a vida, o número de mortes já ultrapassou 220 mil.
A verdade é que, contra os que deveriam apontar soluções, passamos bom tempo dessa pandemia no limite do caos. De um lado, o desconhecimento e a letalidade do vírus; de outro um presidente desrespeitoso, negacionista e que, até o fim do processo, negociou a morte de milhares de brasileiros em troca de uma suposta reeleição em 2022. Digo suposta porque, apesar da dificuldade de se encontrar um adversário, ainda é uma tentativa, ou seja, muita água há de rolar sob a ponte do lamacento rio político do Brasil. A atipicidade de 2020, que alterou conceitos, ajudou a refazer relações e conteve emoções, só não teve similaridade com a inércia, o despreparo e a ilógica logística do governo federal.
Foram tempos dificílimos para milhões de brasileiros. Talvez não tenha sido para o rebanho que insiste em negar publicamente a moléstia, mas, mentindo para parceiros ideológicos, raramente saía de casa e certamente tomará a vacina quando chegar sua vez. Como diz o velho ditado, quem tem orifício tem medo. Escondidos até deles mesmos, boa parte dos corajosos desse grupo passou dias, semanas e até meses internado. Heroica e valentemente, alguns foram intubados e outros passaram dessa para melhor, sendo levados, sem pompa ou discursos, mas com ideologia, à última morada.
No período mais tenso da pandemia, me apeguei aos ensinamentos filosóficos de Avicena, médico e filósofo árabe, pai da medicina moderna, que disse: “A imaginação é a metade da doença. A tranquilidade é a metade do remédio. E a paciência é o primeiro passo para a cura”. Segui à risca esses princípios e, graças a Deus, pelo menos até agora, estou longe da Covid-19. Claro que minha contribuição foi de grande valia. Como utilizo minha pouca inteligência para o bem – meu e de quem convive comigo –, não resisto a uma campanha de vacinação. Já tomei vacina até para ficar bonito. Não consegui, mas estou vivo e saudável.
Como todos deveriam fazer, permaneço trancafiado, aguardando o dia D e a hora H de minha picada. Obviamente estou ansioso. Entretanto, além de democrata e cobrador de direitos, sou cumpridor contumaz de deveres. Quando soube da chegada do primeiro carregamento de vacinas chinesas, fiquei de antena em pé e a primeira ação foi checar a data precisa das duas doses. Mandei lavar a calça e a camisa listrada que faz meses não uso para esse ato solene. Afinal, não é de hoje que torço e espero pela CoronaVac, a única do meu interesse. Vou tomá-la, mesmo que só a encontre na PQP.
Acompanhando pela Globo Lixo toda a movimentação da campanha de imunização, aplaudi a iniciativa de priorizar o pessoal da saúde que esteve e está na linha de frente, bem como os mais antigos da terceira idade, indígenas e pessoas reclusas ou envolvidas com abrigos ou asilos. A surpresa, seguida de um sentimento desprezível, surgiu ao saber que numerosos foras da lei estavam furando fila. Era a namorada e a cunhada do secretário de saúde de um município, o prefeito de outro, os amigos e apaniguados do governador, a amante do aplicador. Enfim, a zona na casa de Mãe Joana, moça certamente prendada, boa brasileira, mas que virou sinônimo de tudo de ruim.
No banco, supermercado ou na farmácia, passar à frente de outro é um gesto grosseiro e antidemocrático, mas tolerável. Aqui, o tema é a sobrevivência. Portanto, furar a fila da vacina é uma violência, atinge o direito à vida. Sugiro que, se puder, esse povinho se tranque no quarto para um exame de consciência, de modo a tentar justificar seu crime. Não existe meio termo ou desculpas. É um ato de desrespeito, de desonestidade com aqueles que se arriscam para cuidar dos infectados. Reitero que, nesse caso, não se quebra somente o princípio básico da democracia, mas da vida. Quem age assim é imoral, antiético. É bandido.
Como diz uma das maravilhosas letras de Almir Sater, “…cada um de nós compõe a sua história. Cada ser em si carrega o dom de ser capaz”. Então, se não somos capazes de respeitar o próximo, como iremos pensar “…que cumprir a vida seja simplesmente compreender a marcha e ir tocando em frente…”. Velhos, novos, presidentes, ministros, parlamentares, magistrados, governadores, prefeitos e eleitores ainda têm muito de viver para aprender sobre a condição humana. A exemplo da mulher de César, não nos basta ser corretos, honestos, sérios, respeitadores e cumpridores de deveres. Temos de parecer que somos isso tudo. Só assim conseguiremos o respeito e a indulgência divinas.
Torcendo para que os fura filas se emendem, comecei a reunir as forças do Além, às quais, sem aquiescência do presidente da República, pedi uma ajudinha sem compromisso para que consigam algum adiantamento dos 5,5 mil litros de IFA, insumo ativo necessário para produção da CoronaVac (a minha vacina) pelo Instituto Butantan. A China – aquela mesma que povoou o cérebro tinhoso de Bolsonaro e de seu rebanho – já liberou um novo lote do material, o que trouxe novo ânimo para o combate à Covid-19. Talvez tenha incomodado os seguidores – muitos evangélicos extremistas – o fato de que IFA (IFÁ em iourubá) também pode ser um oráculo africano. Não é propriamente uma divindade (orixá), mas é conhecido como porta-voz de Orunmilá e de outros orixás. Axé.
Que venham outras vacinas para se juntar à minha CoronaVac. O objetivo é prender os fura filas e imunizar quem queira com brevidade. Temos de lutar contra a monotonia gerada pelo vírus. Não poder viajar à Europa por causa de uma pandemia é pior do que deixar de visitar o Velho Continente por falta de dinheiro. Pensemos no bem maior (a vida), tomemos a vacina e torçamos para que, chegada nossa vez, não encontremos furando a fila um representante do rebanho que fez pouco caso da moléstia, da China e da vacina. Eles gritam, vociferam, xingam, esperneiam, fazem biquinho e ameaçam, mas, quando a morte se anuncia, o buraco negro fica azul da cor do mar. E, se alguém tiver de ir à PQP, que sejam eles.
*Wenceslau Araújo é jornalista