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‘Questão’ vira questão de ordem para moral do nosso jornalismo

Por dever de ofício, sou ouvinte e telespectador assíduo e voraz dos noticiários das principais emissoras de rádio e de televisão. Em decorrência da afinidade profissional e, nos últimos quatro anos, da antipatia obrigatória com as ex-coirmãs (hoje madrastas), minha preferência é pelo Sistema Globo Lixo. Coisas de empatia ocupacional e, talvez, da necessidade de acessar jornalismo um pouco menos comprometido. Nesses dias em que o futebol nacional está em banho maria, quase parando, me dediquei à prática do “sentamento” no sofá. Explico mais adiante o neologismo. Nunca fui, não sou e tenho raiva de quem é crítico profissional de TV. No entanto, zapeando daqui para lá de lá para cá no sofá, fiquei decepcionado com a qualidade do jornalismo televisivo local. Cidade relativamente nova e muito apegada ao segmento administrativo, Brasília é muito mais do que lixo nas ruas, esgoto a céu aberto, filas nos hospitais públicos, parquinhos quebrados, erosões e governo incipiente.

Reconheço a importância do trabalho de utilidade pública, mas quero crer que a Capital da República não seja somente um celeiro de coisas ruins. Queiram ou não, a TV Globo está algumas décadas à frente. Todavia, não posso deixar de lembrar alguns senões. Para começo de assunto, estranho a facilidade de relacionamento dos repórteres, editores e comentaristas da Venus Platinada com as autoridades do Planalto Central. Difícil achar uma das muitas empresas do setor que não estejam ou já estiveram com o “bode” em suas redações. Aliás, “bodes” faladores, daqueles que falam, tomam café, lancham, almoçam e jantam a cada dez minutos com suas fontes palacianas e políticas. É claro que não há veracidade nesse monte de conversas ou encontros diários. Como sou benevolente, se a ideia é nos fazer acreditar que eles empurram a porta dos gabinetes de Lula, de Geraldo Alckmin e do Luiz Roberto Barroso quando querem, acreditemos. Dói menos.

É a necessidade de se mostrar mais informado do que realmente são. Acho que até Vladimir Putin, Benjamin Netanyahu, Volodymyr Zelensky, o chefe supremo do Hamas e o líder das milícias do Rio de Janeiro já participaram desses rapapés globais. Certamente pediram off aos óbvios “comentaristas” matutinos, vespertinos e noturnos da casa (sempre os mesmos). Por isso, não foram citados como fontes seguras, parceiras e fidedignamente vinculadas ao coração dos craques da notícia. As demais TVs não fogem à regra, mas em escala infinitamente menor. Pelo menos seus “analistas” e apresentadores aparecem menos e têm afinidades exclusivamente profissionais com seus entrevistados, sejam eles autoridades ou representantes da sociedade. Também não têm, com os “adversários” globais, conhecimento vasto a respeito de qualquer tema. Aprendi com meu avô que todos aqueles que se sublimam merecem ser olhados com desconfiança. É o que faço. Ouço, assisto, enalteço quando necessário, mas desconfio. Afinal, perfeição só a divina. Vem daí a expressão popular quem fala demais dá bom dia a cavalo.

Com a globalização da informação, acabou aquela história de aguardar o Jornal Nacional para veicular uma notícia bombástica. Atualmente, a maioria das empresas do ramo está on-line 24 horas e tem o mesmo poder de fogo da TV Globo. A escolha é de cada um. A minha é pública. Portanto, não entendam como simples crítica a narrativa de hoje. É uma constatação. Da mesma forma que questiono o excesso de superioridade da turma do Plim Plim, particularmente do canal pago, sou crítico do que, imagino, os jornalistas do século 21 supostamente entendem como licença poética o que não passa de um temerário e terrível vício de linguagem. Por exemplo, os “colegas” aprenderam a utilizar o termo “questão” para definir acidente de trânsito, briga de casal, desmoronamento de barragem, decisões do Judiciário, votações no Congresso, inaugurações, assaltos e até estupro. Tudo é a “questão”.

Principalmente para a turma que sai das faculdades direto para as bancadas das emissoras de rádio e de TV, a “questão” virou sinônimo de pergunta, resposta, interrogação, problema, argumento, conteúdo, objeto, caso, tese, tema, confusão, negócio, controvérsia, disputa, pendência, dissidência, desacordo e discórdia, entre outras expressões. Tudo com anuência das chefias. Na Globo, “questão” parece regra.

Faço um preâmbulo para lembrar aos chefes um famoso pensamento do filósofo Sócrates: “Aquilo que não puderes controlar, não ordenes”.

Perdão pelo extremismo, mas é chato ficar sem entender aonde os coleguinhas querem chegar com a tal da “questão”. O aí para tudo eu já consigo engolir. Ainda mais complicado é aceitar a troca do nome de uma autoridade citada no texto mais de uma vez por objetos. Pior de tudo é o neologismo “meximento” para substituir o verbo mexer em movimento. Se os globais podem “meximento”, eu posso “sentamento”.

Novamente digo que a licença poética ou sinais distantes de metáforas não existem, por exemplo, quando o repórter ou apresentador quer se referir a uma fonte de um ministério, de uma secretaria ou de um organismo oficial e diz que a pasta informou. Desde o ensino primário aprendi que animais, coisas, troços, trecos e peças não falam. Quem fala é a pessoa que representa a pasta. As normas do bom jornalismo não mudaram.

Portanto, sem trocadilhos, ainda prefiro que o cateto fantástico nos salve da hipotenusa. Sei que dirão que, ocupado em descobrir os defeitos alheios, esqueço de investigar os meus. Não é bem assim. A questão é que, como a pasta não resolve meu problema, optei pela máxima do Marquês de Sade: “Só me dirijo às pessoas capazes de me entender. Essas poderão ler-me sem perigo”. Eis a questão.

*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978

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