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Ana Lúcia

Rabiscos da infância vêm sem prazo de validade

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Produção Irene Araújo

Ana Lúcia adorava fazer desenhos nos cantos dos cadernos. Sua mãe, no entanto, sempre que pegava a menina entretida com aquilo, não perdia a oportunidade de repreendê-la.

— Ana Lúcia, pare de rabiscar!

Teimosa que era, a garota, lápis na mão, parecia decidida a criar figuras diversas sobre o papel. Os amigos ficavam maravilhados, e a professora de artes, do alto de tanto conhecimento, afirmava que a aluna possuía talento incomum. Ana Lúcia sonhava acordada com o dia que seus desenhos seriam expostos em uma galeria, talvez até mesmo no Louvre, em Paris.

O tempo passou, Ana Lúcia desenvolveu um estilo próprio. Tanto é que, não raro, alguém a convidava para ilustrar algum livro. Chegou a emoldurar alguns desenhos, que eram vendidos a preços módicos na feira do bairro, mas que a enchiam de esperanças de sobreviver da sua arte.

Perto de completar 25 anos, a mulher conheceu João, um dos compradores dos seus quadros. O primeiro contato, apesar de agradável, não parecia nada mais do que a relação entre vendedora e cliente. Todavia, encantado com os traços produzidos por Ana Lúcia, o rapaz retornou à feira nas semanas seguintes, onde sempre comprava uma ou duas obras.

Aconteceu no final de setembro, quando a primavera atiça os corações solitários. João, mesmo que tímido, convidou a artista para um café. Do café, foram ao cinema. Dali, foi um pulo até a cama, onde descobriram que não conseguiriam mais viver separados.

Juntaram os panos e, dois anos após, veio a pequena Lisa e, no ano seguinte, nasceram os gêmeos Francisco e José. Sem hora para desenhar, Ana Lúcia viu seus sonhos se perderem entre as pilhas de roupas e as fraldas para trocar. José, que precisou arrumar outro emprego, ainda lavava a louça, mas se sentia culpado por não poder ajudar mais a esposa. Faltavam-lhe forças.

As décadas seguintes voaram sem que Ana Lúcia tivesse tempo de perceber as rugas que se apossaram do seu rosto. Ela estava sentada no sofá, quando o marido chegou. Ele trazia um embrulho e, antes de entregá-lo à esposa, a beijou docemente nos lábios.

Que nem menina, a velha abriu o presente e se deparou com um bloco de folhas e um conjunto de lápis. Seus olhos cansados sorriram ao olhar o passado de maneira mais generosa. Tanto é que, pelos dias seguintes, Ana Lúcia voltou a desenhar compulsivamente.

É verdade que, de vez em quando, imaginava sua saudosa mãe dizendo para ela parar de rabiscar. Seja como for, a desenhista já agendou uma exposição de seus quadros na garagem de sua casa. Parentes e amigos estão ansiosos para tal evento. Pois é, parece que os sonhos não têm data de validade.

*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.

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