Moradora do Jardim Céu Azul, em Valparaíso de Goiás (GO), Pâmela Valero, de 24 anos, estuda administração de empresas e faz estágio na Asa Sul. Daqui a alguns semestres, ela integrará a porcentagem de menos de 3% das mulheres negras da periferia metropolitana de Brasília com curso superior completo. A jovem sabe que para ela as coisas são mais difíceis. A mãe nunca estudou e trabalha como diarista. “Jamais vou deixar de estudar porque sei que posso mudar minha realidade com o conhecimento; quero ser empresária.”
A periferia metropolitana de Brasília, região em que Pâmela vive, é formada por 12 municípios goianos que rodeiam o DF. Lá, 68,83% das mulheres sem instrução ou com o ensino fundamental incompleto são negras. São negras também 68,27% das 90 mil mulheres que ganham até um salário mínimo por mês — mais da metade das 179 mil mulheres (negras e não negras) que declaram alguma renda (44,76% da população feminina da periferia).
Próximo ao Dia Internacional de Combate ao Racismo, comemorado em 21 de março, os números mostram que, aparentemente, as negras têm um lugar social marcado: a base da pirâmide.
A situação é ainda mais grave se compararmos os universos feminino e masculino. Enquanto a renda média dos homens é de R$ 3.439 no DF e de R$ 1.403,66 na periferia metropolitana, a das mulheres é de R$ 2.680 e R$ 812,61, respectivamente.
No Distrito Federal, as negras representam 63,94% das mulheres que estudaram pouco e 34,75% daquelas com curso superior. A vendedora ambulante Gabriela Ribeiro Dias, de 21 anos, moradora do Riacho Fundo II, não conseguiu terminar os estudos. “Já fui empregada doméstica, cuidei de criança e trabalho na Rodoviária do Plano Piloto há quatro anos”, conta a jovem. Ela trabalha desde os 13 anos e estudou até o 2º ano do ensino médio. “Meu sonho é ser bombeira, mas ainda não sei quando vou conseguir realizá-lo.”
Dos quase 2 milhões de mulheres do DF e da periferia metropolitana de Brasília, mais da metade é negra. Elas compõem 55,01% do quase 1,5 milhão de mulheres que vive na unidade da Federação. Na periferia metropolitana, representam 65,55% das quase 500 mil mulheres que vivem nos municípios. Mesmo assim, ficam menos tempo na escola, ganham salários mais baixos e são maioria entre as que trabalham na informalidade (no DF, as negras representam 68,77% das trabalhadoras sem carteira de trabalho assinada).
Os dados foram divulgados em 5 de março, por meio da pesquisa Mulheres no Distrito Federal e nos Municípios Metropolitanos: Perfis da Desigualdade, feita pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan) com base no censo demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
O estudo trata de diferenças socioeconômicas das mulheres sob a ótica do racismo e do machismo no Distrito Federal e nos 12 municípios goianos que compõem a periferia metropolitana de Brasília: Águas Lindas, Alexânia, Cidade Ocidental, Cristalina, Cocalzinho, Formosa, Luziânia, Novo Gama, Padre Bernardo, Planaltina, Santo Antônio do Descoberto e Valparaíso.
As estatísticas mostram que o quadro das desigualdades é amplo e interconectado. Para a secretária de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Marise Nogueira, presente no dia da divulgação do estudo da Codeplan, a realidade expressa pelos números reforça que as diferenças entre homens, mulheres negras e não negras são reais.
Ela ressaltou que o racismo faz mais diferença no tecido social do que o próprio machismo da sociedade brasileira, e que ambos são bases da violência.
Com o objetivo de atenuar as disparidades, a secretária adiantou que a pasta, criada em 1º de janeiro, desenhará políticas públicas que promovam cidadania plena, digna e para todos com base nos dados. “Represento uma mulher negra que fugiu a esse quadro, mas isso não deveria ser visto positivamente, porque sou uma exceção. O papel do Estado é criar oportunidades iguais para todos, ainda que não sejamos todos iguais”, acrescentou Marise.
Segundo a secretária-adjunta de Políticas para Igualdade Racial, da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos, Vera Lúcia Araújo, as estatísticas da Codeplan fundamentam teorias e embasam políticas públicas específicas para mulheres negras no DF e na periferia metropolitana.
“A desigualdade e a diferença salarial marcadas pelo corte de raça é determinante para pensarmos a ocupação do espaço feminino”, afirma. Vera ressalta que, em todo o País, as mulheres negras são majoritariamente representadas no mercado de trabalho por empregadas domésticas — o que varia entre as unidades federativas é o salário recebido: “A responsabilidade pela exclusão da mulher e principalmente da mulher negra é responsabilidade total do Estado.”
Ela lembra que a secretaria formula políticas de inclusão voltadas para o mercado de trabalho. “Estudamos fazer um projeto que institui uma política do afroempreendedorismo, em parceria com a iniciativa privada.” A ideia é capacitar homens e mulheres negros para o mercado de trabalho e investir na estética afro para o aporte das atividades de produção e comercialização, como na indústria da moda.
Para a empregada doméstica Ivani de Jesus, de 29 anos, a ideia parece boa. Moradora de Alexânia (GO), ela largou os estudos para trabalhar, mas não vê crescimento na profissão. “Gostaria de fazer qualquer outro serviço. Nós, mulheres negras, somos mais batalhadoras e sempre estivemos no mercado, pena que não conseguimos os melhores empregos”, lamenta.
A secretária-adjunta da pasta acredita que a maior desigualdade entre as mulheres negras e as não negras está no preconceito. “Homens e mulheres se equiparam em situações hierárquicas”, explica Vera Lúcia. Segundo ela, a solidariedade das mulheres não negras em relação às negras é restrita. “Comumente, são elas as empregadoras, aquelas que se negam a assinar uma carteira de trabalho”, observa.
A professora da Universidade de Brasília Tânia Montoro, pós-doutora em comunicação e cultura, acrescenta que, historicamente, a mulher negra brasileira sofre todas as opressões de forma transversal: classe, gênero, idade e raça. “O homem negro é muito machista; as mulheres homossexuais também são rejeitadas pela comunidade negra”, explica. Para ela, a política atual de combate ao racismo e ao machismo no Brasil é fraca, e o foco do Estado deve ser o investimento em educação pública de qualidade. “As negras que hoje chegam à universidade e que ascendem no mercado de trabalho dificilmente são as da base social”, diz.
A pesquisadora ressalta que as políticas devem ser voltadas à cultura negra, principalmente porque o Brasil é um país diverso. “Há um universo da negritude que não conhecemos”, aponta. “Temos que usar nossas políticas afirmativas para valorizar a cultura e a estética negra e não apenas mascará-las.”
Gabriela Moll, Agência Brasília