Tem um quê de deprimente a polêmica da vez das redes sociais no Brasil em torno do termo “racismo climático”. O conceito não é novo. É usado pela academia já há algumas décadas, pela ONU e até por organizações internacionais insuspeitas de serem “coisa de esquerda”, como o Fórum Econômico Mundial. É um dos pilares de um conceito ainda mais amplo, de justiça climática, sem a qual é impossível de fato combater a crise climática.
Mas num país em que tudo vira motivo para um FLA x FLU digital, a expressão usada pela ministra Anielle Franco ao comentar o desastre das chuvas no Rio de Janeiro no fim de semana passado, que causaram pelo menos 12 mortes, causou um auê.
No domingo, a titular da pasta de Igualdade Racial postou em sua conta no Twitter/X: “Estou acompanhando os efeitos da chuva de ontem nos municípios do Rio e o estado de alerta com as iminentes tragédias, fruto também dos efeitos do racismo ambiental e climático.”
” Num país que não lida bem com seu histórico escravocrata, que odeia ser chamado de racista, que nega até mesmo que o racismo seja parte da nossa sociedade, ver uma ministra negra, de um governo de esquerda, falando em: “o quê? racismo ambiental?”, pareceu um absurdo de outro mundo.
Estava ali, entregue numa bandeja de prata, o tema para a lacração das redes nos dias que se seguiram. Uma reação, diga-se, completamente desproporcional.
Sem parar para pensar um segundo no que ela estava dizendo ou tentar entender o problema de fundo, a causação começou. Primeiro com as piadas: “São Pedro raciste”, disseram alguns. “A neve é branca. É isso o racismo?”, disseram outros. Um monte de gente postou que o racismo era tirar a roupa do varal quando se vêem nuvens negras no céu. Engraçadinhos. Só que não. E isso era o mais leve.
No fundo, havia uma irritação enraizada: “Tudo agora é racismo?”, resumiu alguém. Teve coisa muito pior, como ofensas diretas à Anielle, que por motivos óbvios não vou reproduzir aqui.
Aí veio a turma do “racismo ambiental/climático não existe, o problema é a desigualdade social, a falta de moradia, de saneamento, que atinge também brancos, etc, etc”. O economista Joel Pinheiro da Fonseca defendeu mais ou menos essa ideia na sua coluna na Folha, o que acabou colocando mais lenha na fogueira das redes.
Para Fonseca, Anielle usou em seu post um “lugar-comum do discurso progressista” e um “roteiro preguiçoso”. Falar em racismo ambiental, argumenta ele, é inócuo e fazer um recorte racial não ajuda na resolução do problema. “Embora o problema social continue o mesmo, nossa maneira de olhar para ele mudou. Quando falamos em racismo, já apagamos quaisquer vítimas brancas”, escreveu, iniciando sua linha de raciocínio.
Aí segue: “Tratar o problema como um tipo de racismo nos afasta das soluções. Em vez de discutir obras de infraestrutura urbana, novas moradias – que nada têm a ver com cor de pele – vamos discutir o racismo na sociedade, discussão cuja conclusão obrigatória, já sabemos, é que ele é ‘estrutural’ e portanto só será resolvido com o fim do capitalismo. Era tão mais fácil melhorar o escoamento urbano…”
Já poderia questionar um monte de coisa aí, mas aí ele continua: “Há áreas em que o recorte racial é relevante, porque joga luz em mazelas de que a simples desigualdade social não dá conta. Um negro pobre sofrerá mais assédio de seguranças de um shopping do que um branco pobre. Mas será que as chuvas castigam mais um negro favelado do que seu vizinho branco? Claro que não. (…) Ou será que, resolvendo o problema do racismo, estariam também resolvidas as enchentes nas periferias? Talvez até o aquecimento global?”
Eu não vou aqui debater ponto a ponto porque tem gente muito mais capaz e habilitada e com lugar de fala que eu fazendo isso. Recomendo esse vídeo da jornalista Flavia Oliveira e esse post do advogado Thiago Amparo. Mas vamos em dois pontos: Não Joel, de fato um “negro favelado” e “seu vizinho branco” muito provavelmente serão afetados da mesma forma diante de um deslizamento de terra ou de uma inundação, mas não é essa a conta, né?
“Não é porque existem brancos vivendo em favelas que isso atenua o fato de que a maioria ali é negra. Que a maioria das vítimas nesse tipo de desastre é negra. Ou que os lugares com menos estragos, mais seguros, com menos vítimas, sejam de maioria branca”.
O impacto é desproporcional, e isso não é apenas fruto da desigualdade social. O que será que empurra mais negros à pobreza e a condições desumanas de vida?
Resolver o racismo resolveria a enchente ou o aquecimento global? Poxa, não é essa a pergunta, né? Agora, quem será que se sente mais ameaçado diante de uma enchente ou do aquecimento global? Tentar “resolver” esses problemas sem levar essas diferenças em conta vai só aumentar essa disparidade.
O jornalista Pedro Doria usou um argumento de que talvez a gente não devesse falar em racismo ambiental ou climático ou o que seja. Não precisa da expressão, diz ele, se os pontos que ela encerra são bem aceitos e conhecidos: de que os negros estão entre os mais pobres e os com menos acesso. Para ele, ao lançar mão da expressão, o que se cria imediatamente é atrito entre os lados polarizados do país. Falar em racismo ambiental, argumenta, “é fazer política da lacração, não política da solução”.
Que loucura, né? Então quer dizer que é melhor não usar o nome certo das coisas, ou isso vai atiçar sensibilidades e aí já era o debate sério sobre o problema.
Isso me lembrou uma palestra que vi há muitos anos de um jornalista ambiental americano que tinha feito uma matéria sobre políticas adotadas na Flórida – estado dominado por republicanos nos Estados Unidos –, de adaptação às mudanças climáticas.
Ele disse que várias medidas vinham sendo tomadas tendo em vista o aumento do nível do mar, de tempestades, de risco de enchentes e inundações e tal, todas levando em conta as estimativas de cientistas do clima. Mas sem nunca falar em mudança do clima, aquecimento global, nada.
Usar essas palavras era proibido, para não espantar os republicanos. Só assim as políticas passavam. Dourar a pílula, usar outros argumentos, para não virar lacração. Que infantil. Que coisa mais triste…