Pernambuco
Raquel vai passar negócios de 30 bilhões do Estado para a iniciativa privada
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Na contramão do mundo, onde diversos países voltaram atrás na privatização dos serviços de saneamento e de distribuição de água às suas populações, Pernambuco segue o mal exemplo que vem sendo adotado por diversos estados brasileiros e, com o aval da governadora Raquel Lyra (PSDB), avança no projeto de entrega desses serviços à iniciativa privada.
O projeto de concessão da Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) de iniciativa do Executivo estadual, vem sendo bombardeado em audiências promovidas pela oposição, por sindicatos de trabalhadores e movimentos sociais. Mas pesa na balança , a favor da privatização, o bilionário custo da empreitada, em torno de R$ 30 bilhões, a serem divididos entre o estado e o grupo privado que venha a assumir o controle da estatal dos serviços de saneamento.
Na segunda-feira (17), durante evento sobre assistência social aos municípios pernambucanos, Raquel Lyra desafiou os opositores da privatização a apresentarem uma alternativa: “Desafio quem vai conseguir universalizar a distribuição da água e o tratamento de esgoto sem a parceria da iniciativa privada. É ela que vai nos ajudar a superar a falta de água que todos nós vemos na casa de muita gente”, disse.
Segundo a governadora, para atingir a universalização até 2033 – meta do Brasil, alinhada com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU – Pernambuco vai precisar investir R$ 30 bilhões. Com a concessão, o montante será dividido com a empresa que vencer a licitação quando o processo for aberto. A questão, no entanto, é mais política porque a Compesa tem uma excelente saúde financeira e tem capacidade de gerir a universalização dos seus serviços sem a necessidade de aporte societário com a iniciativa privada.
“Já estamos investindo R$ 6 bilhões para tirar obras que estavam no sonho e no papel, que eram muito faladas e pouco realizadas. É o maior investimento da história recente do Estado na companhia”, confirma a governadora Raquel Lyra.
A certeza de Raquel Lyra de que só o mercado resolverá a questão do abastecimento d’água e de saneamento básico no estado, embora tenha os precedentes da privatização desses serviços pelos governadores Cláudio Castro (PL), no Rio de Janeiro, e Tarcísio de Freitas (Republicanos), em São Paulo, a verdade é que a transferência desses serviços para a iniciativa privada vem sendo revertida em diversos países.
Na noite do último dia 10 de fevereiro, a Unidade Popular em Pernambuco e o PSOL, junto ao Sindicato dos Urbanitários de Pernambuco (SINDURB-PE), Partido Socialista dos Trabalhadores Unificados (PSTU), Rede Sustentabilidade e a deputada estadual Dani Portela (PSOL) realizaram uma plenária para discutir encaminhamentos e organizar o enfrentamento ao projeto de privatização da água no estado.
Eles apontaram que só entre os anos 2000 e 2019, 312 cidades, em 37 países, reestatizaram seus serviços de tratamento de esgoto, após a falência do serviços privatizados, apesar do aumento do valor das tarifas.
Alemanha, França, Bolívia, Argentina, Equador, Venezuela, Honduras e Jamaica estão entre os países que retornaram para o controle publico esse serviço tão essencial. No projeto de privatização em Pernambuco, o setor privado vai deixar os serviços mais pesados, como captação e tratamento de água, para o setor público enquanto ficará com o filé da distribuição.
Outra ameaça é a extinção de programas como a Tarifa Social, que já sofreu um aumento no fim do ano passado e dos caminhões-pipa, que hoje são mantidos exclusivamente pela Compesa. A plenária também apontou a contradição do projeto de privatização com o apoio do governo federal, por meio do BNDES, além do PAC 3, que anunciou um investimento de R$3,9 bilhões para obras com a água e R$2,2 bilhões para o tratamento de esgoto.
Quase todos os 184 municípios do Estado, incluindo o distrito de Fernando de Noronha, estão na rota de trabalho da Companhia Pernambucana de Saneamento.
O Tribunal de Contas do Estado de Pernambuco elaborou um painel de saneamento, que revela que apenas 30,8% da população do Estado dispõe de serviços de coleta de esgoto, enquanto 83,56% têm acesso à água. Esses números estão abaixo das médias nacionais, que são, respectivamente, 84% para água e 55,81% para esgoto. No Recife, os serviços de água e esgoto atendem a 96,43% e 44,99% da população, respectivamente. O painel de saneamento aponta ainda que, das localidades avaliadas, apenas 21 (12%) oferecem água a 100% de seus habitantes.
Em artigo que escreveu para o site Migalhas , a advogada Rosa Freitas, doutora em Direito pelo PPGD/UFPE, observa que a crítica sobre a possibilidade de concessão dos serviços de água e saneamento, deve-se ao fato de os investidores privados dificilmente conseguiriam realizar os investimentos necessários para a melhoria do serviço e a ampliação da área de cobertura, sem onerar demasiadamente as tarifas dos serviços.
Ela lembrou que em Pernambuco, uma PPP (Parceira Público Privada) com a empresa BRK Ambiental foi celebrada em 2013 com a finalidade de ampliar a rede de saneamento do Grande Recife, com a meta de atingir 90% dos domicílios da região metropolitana até 2025. “No entanto, até o momento, apenas 38% da rede foi saneada”, destaca Rosa Freitas
Ela também faz um paralelo entre a privatização dos serviços de saneamento com o processo de privatização do setor elétrico, ocorrido na década de 1990. Para a advogada, esse processo pode ter sido avaliado como positivo por muitos anos, mas, nos últimos três anos, “enfrentamos uma série interminável de problemas”, como a situação da ENEL em São Paulo, com interrupções de serviço que duravam dias e a saturação do sistema, sem que houvesse a substituição de cabos e fios. O sistema opera com postes de mais de 30 anos, sem a substituição de equipamentos básicos, como transformadores.
“Mais de 25 anos depois, estamos sentindo os efeitos da falta de investimento dessas empresas e dos desafios de regulação. Os problemas nas agências reguladoras são conhecidos por todos, sendo o principal, sem dúvidas, a captura do setor regulado por grandes corporações. Antes CEO das empresas concessionárias ocupam cargos importantes na ANEL e egressos da agência nas empresas.
No âmbito internacional, uma experiência extremamente negativa de privatização foi a guerra da água na Bolívia, que ocorreu na cidade de Cochabamba. Devido ao encarecimento do serviço para a população e à revolta da sociedade, foi necessária a reestatização do serviço, o que culminou em um processo milionário contra o Estado boliviano.
Os dados do IBGE de 2020 informam que somente em casos excepcionais o serviço de saneamento era realizado pela iniciativa privada no Brasil. A PNSB mostra que, em 2017, dos 5.570 municípios brasileiros, incluindo o Distrito Federal e o distrito estadual de Fernando de Noronha, 5.517 (99%) possuíam o serviço de abastecimento de água por rede em funcionamento e realizado por, ao menos, uma entidade executora. Em 31 cidades, o serviço estava em fase de implantação ou paralisado, e em 22, ele não existia. Isso foi verificado em 13 cidades do Nordeste, seis do Norte e duas do Centro-Oeste.
A pretensão de transferir a iniciativa privada parte dos serviços prestados pela Compesa, pode até melhorar o serviço de distribuição, mas, com certeza, vai encarecer a tarifa e, por conseguinte, o preço de bens, serviços e custos domésticos, sustenta a advogada.
Para Rosa Freitas, a Compesa não possui a melhor governança, apesar dos esforços, mas talvez isso não seja motivo suficiente para a concessão do serviço à iniciativa privada. A mesma dinâmica quanto à possibilidade de concessão dos serviços de distribuição também poderia ser aplicada ao serviço de coleta de resíduos sólidos. Os resíduos sólidos são geralmente terceirizados, ou a coleta é realizada pela própria municipalidade, em municípios pequenos. Em geral, a destinação é realizada por meio de sistemas de consórcios públicos.
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