Depois de anos de lutas e de tentativas de perenizar a democracia, o povo brasileiro enfrenta hoje uma situação singular e muito parecida com o que há de pior em boa parte das republiquetas africanas, nas quais, de cabo para cima, qualquer um pode comandar um golpe. Vivemos o clássico caos de cidades dos almanaques de faroeste, cujo enredo é esperar um bom pistoleiro para afugentar o malfeitor e seu bando. Normalmente são currutelas dominadas por uma dona de bordel e um soldado de puliça. Tudo a ver com o Brasil de nossos dias. Se houver, a diferença é a patente do líder. Sem nenhuma pretensão alarmista, faço minhas as palavras do general Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, para quem está claro que a proposta do presidente da República, seus comandados e apoiadores é destruir as instituições. Resta saber se o povo permitirá essa nova anedota golpista.
Mais do que uma simples historieta, a quadra que vivemos lembra a antológica filosofia de botequim, responsável por desnudar o ser humano e elevá-lo à condição de rato quando acha que pode invadir a despensa na ausência do gato. É a velha mania dos mal criados, mal educados e mal acostumados que se acham acima do bem e do mal. Na analogia com os roedores e bichanos, o chefe da nação aproveitou-se das férias dos gatos (congressistas e ministros dos tribunais superiores) para mostrar suas presas. Nadou de braçada nas críticas ao sistema eletrônico de votação, a representantes do Supremo Tribunal Federal e o Tribunal Superior Eleitoral, a governadores e até àquele que morreu, numa alusão desumana e bestial ao falecido ex-prefeito Mário Covas.
Coisas de menino ranzinza e habituado a falar, ameaçar, julgar e desonrar semelhantes sem contrapartidas. Após meses de peraltices rabugentas, o falador recebeu o troco na noite dessa segunda-feira (2), quando o presidente do tribunal eleitoral, ministro Luís Roberto Barroso, deixou de lado palavras e notas de repúdio e partiu para o ataque com a mesma ferocidade do antagonista. Por unanimidade, o TSE decidiu abrir inquérito administrativo para investigar agressões infundadas às eleições e, também por decisão unânime, recebeu aval para requerer ao STF a inclusão da maldosa live da última quinta-feira (29) nas investigações sobre fake news. Considerada pela maioria dos analistas como “memorável”, a noite de ontem serviu para comprovar que nem sempre o diálogo é o melhor caminho para conter peraltices.
Sem nenhuma apologia à violência, como nas antigas famílias, às vezes é preciso vara de marmelo – a popular peia- para controlar rebeldes sem causa. Foi o que fizeram Barroso e Luiz Fux, presidente do STF. Agiram como um cidadão de bem cansado do vilipêndio diário do chefe imediato. Atendendo apelo do eleitor digno e rebaixado pela arrogância de um ultrapassado mito e pelas lambanças de seus mitificados seguidores, os dois magistrados entenderam que, a exemplo de qualquer relação, quando falta o respeito é porque acabou a consideração e tudo que havia de bom. E não existe mais respeito algum do presidente com o país. Então, natural que não haja do país com ele. É a lei de causa e efeito.
Com aval de expressiva parcela da população, Luiz Fux clareou o cérebro do indiscreto tagarela. Deixou claro que não será pela força que ele conquistará novo mandato. “No contexto atual, após 30 anos de consolidação democrática, o povo brasileiro jamais aceitaria que qualquer crise, por mais severa, fosse solucionada mediante mecanismos fora dos limites da Constituição”, afirmou o ministro. Na mesma linha, Luís Roberto Barroso pediu atenção às instituições e à sociedade civil: “Superamos os ciclos do atraso institucional, mas há retardatários que gostariam de voltar ao passado”. E são retardatários com repetidas vocações nocivas. Conseguir efetivá-las é outra história.
O fato é que, antes tarde do que nunca, os gatos do Poder Judiciário resolveram mostrar as garras, isto é, decidiram sair do vácuo do ocupante do Planalto. Enquanto 2022 não vem, o recado dos deuses do STF e do TSE foi tão objetivo como o resultado da naftalina em armário infestado de ratos e claro como álcool em gel para ajudar no controle do vírus da Covid-19. O álcool não combate a doença, mas sabidamente impede que o bichinho ataque mortalmente nossas vias respiratórias. Quanto ao bicho maior, o problema são as pesquisas de intenção de voto. Ele se assanha sempre que está em baixa. Como não há perspectiva de reação a curto, médio e longo prazos, os indicadores são de que continuaremos ouvindo baboseiras. Tudo na vida passa, tudo muda. E ele também passará.
É apenas uma questão de tempo. E de votos.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978