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Maria mole

Recordações de um ex-monge cervejista que nunca ficou sujo na rodinha

Publicado

Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto Reprodução do X

Com a aproximação do fim de mais um ano, preciso me confessar publicamente. Do grelhado de pestanas aparadas, no subúrbio do Rio, até o gelado no pau, em Portugal, já experimentei de tudo nessa vida louca. Antes que maldem de mim, foi quase tudo. Mão naquilo e aquilo naquilo de outro fulano ou ciclano, jamais. Segui os ensinamentos de um presidente que mal entrou e saiu. Foi-se, mas deixou enraizado no meu eu o que hoje digo para nós: tudo que fiz Fi-lo porque Qui-lo. E não se fala mais nisso. Ponto final. Também não quero – em verdade não devo – denominar de vagabas meus amigos que ainda hoje vivem à custa dos pais, avós e padrinhos.

Alguns mais afoitos criaram coragem e fizeram como o hoje rei Charles III, que só pensou em trabalhar depois dos 60 anos. A rainha Elizabeth bem que tentou, mas malhou em ferro frio. Não tive berço, mas se tivesse certamente não teria esse desprendimento. Por isso, comecei cedo, mais precisamente quando as Lojas Ducal ainda vendiam ternos de tergal em 36 prestações. O carnê era tão robusto como meu patrimônio de aspirante a oficce-boy. De tão ruim, a beca acabava na terceira ou quarta parcela. Devi à empresa de confecção de décima-terceira linha até seu fechamento, em mil novecentos e D. João VI.

Isso ocorreu no mesmo dia em que passei a dever à Impecável Maré Mansa, loja parecida com uma dessas tendinhas de secos e molhados que, durante um surto de soberba, inventam de também vender roupas masculinas. Aliás, por falta de dividendos e de moeda corrente, dever sempre foi o meu forte. Tive dívidas impagáveis com a casa de facilidades, com o Ponto Frio Bonzão, com a Mesbla e com as Casas da Banha. Até o primeiro gravador de fitas K-7 tive de devolver bem antes que ele se transformasse em barganha com o pastor da igreja evangélica que frequentava e da qual fui expulso por falta de recolhimento do dízimo. Devi, mas nunca neguei.

Detalhes que não vêm ao caso. Magro desde menino, de frente eu lembrava o mapa do Chile. De costas, uma tábua de passar roupa. O problema era a posição de perfil. Não me achavam. Desandei a comer como uma impinge após passar a ser chamado pelos amigos do primário e do ginasial de cesta básica, pois não tinha carne. Nada que incomodasse. A amizade acima de tudo. Fazia qualquer negócio para não ficar sujo na rodinha. Felizmente saí do outro lado sem precisar escorregar no Melhoral, ser ungido pela pomada Minâncora ou dançar na boquinha da garrafa.

Rezei na cartilha dos monges tibetanos e não me arrependo. A filosofia que carrego no lombo envelhecido é a mesma da juventude: dinheiro não traz felicidade, mas compra cerveja que é quase a mesma coisa. Em decorrência do cervejismo, passei a ler sobre os males da bebida. Parei de ler logo após concluir a segunda página. Dei sorte porque a primeira estava em branco. Fui precoce em muitas coisas. A primeira namorada, por exemplo, conheci na casa de Madame Dolores, a prostituta mais velha a se vender nas redondezas. Me perdoem a liberdade, mas lembro de um cliente ter perguntado à madame se ela fazia 69. Seca e na bucha, a resposta foi imediata: “Faço em outubro. Quem te contou?

A segunda surgiu em meados da sexta ou sétima década do século passado. Ainda não havia atingido o sonhado fifteen, a marca dos 15 anos. Sem eu saber, os mesmos amigos com os quais eu não queria confusão apelidaram a acanhada menina de Mentira. A tradução veio cerca de 30 anos depois. Diziam que ela era muito feia para ser verdade. Tadinha! No jogo de purrinha, jurei amizade eterna a todos aqueles que comigo levaram a vida no arame. Descumpri a jura recentemente, exatamente no dia em que descobri que eles descobriram meu novo apelido. Tudo era uma brincadeira. Ficou sério por conta de um carinhoso lisonjeio da patroa. Num desses dias de alegria geral, ela resolveu me chamar de meu doce. Rindo de orelha a orelha, quis saber se era doce de côco ou de leite. Nenhum dos dois. Para ela, eu, que já fui rapadura, hoje não passo de maria mole.

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*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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