Trem fantasma
Relação de ódio entre metades do Brasil fica clara na eleição
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emSe houve algum traço de curiosidade no resultado da eleição do último domingo, uma delas foi protagonizada pelo próprio eleitor e alcançou candidatos reacionários e que, até agora, pouco produziram em benefício da nação. Apesar de todas as contraditas do produto final, nada mais bizarro do que o fato de os principais recordistas de votos serem justamente os maiores críticos do sistema eletrônico de votação. São as contradições político-pessoais de deputados e senadores eleitos pela urna eletrônica que tanto combateram. Ao longo da campanha, a maioria desses críticos chegou a afirmar que a máquina de votar era sinônimo de fraude. Seriam eles a fraude? Pois bem, que sejam humildes e, no mínimo, proponham um desagravo à Justiça Eleitoral, cujos dirigentes e técnicos não podem ser culpados do despreparo ou do pouco caso do eleitorado com o país que habitam.
Sei o quanto é difícil cobrar esse tipo de gesto decente a pessoas que, por pouco, não jogaram no lixo do retrocesso político o equipamento que os elegeu. Fora a enxurrada de votos nos generais Hamilton Mourão e Ricardo Pazuello, nos ex-ministros Damares Alves, Ricardo Salles e Sérgio Moro e em alguns militares da reserva, também foram reeleitos vários satanizadores da urna, entre eles os deputados federais Bia Kicis (DF) e Eduardo Bolsonaro (SP). Algo como uma promoção relâmpago, daquelas em que o pecador paga um grosso carnê ao Diabo para obter alguma vantagem. Nada como um dia atrás do outro e uma noite no meio para refletirmos sobre nossas sandices. A começar pelo povo apelidado de eleitor, infelizmente nem todos conseguem essa reflexão com a necessária rapidez.
De concreto, elegemos uma legião de cidadãos e cidadãs preocupados exclusivamente com seus umbigos. No máximo com suas famílias, igrejas, corporações e com os grupos de amizades mais próximos. Literalmente, é um trem fantasma. Grande derrotado da contenda de domingo, o país é apenas um detalhe. É uma questão de tempo a descoberta sobre o abandono daqueles que garantiram mais quatro anos de mandato a quem nunca viram. Só ouviram falar. Partindo desse pressuposto, impossível é não lembrarmos das sábias palavras do “imorrível” Ulysses Guimarães. Segundo o Senhor Diretas Já, se achamos o atual Congresso Nacional ruim ou péssimo, aguardemos o que será empossado em fevereiro de 2023. De prognóstico antecipadamente mais ou menos, queira Deus que ela não seja ainda pior. Ainda da lavra de Ulysses, cada povo tem o Parlamento que merece. Em breve, teremos o nosso.
Assim são as criaturas. Sinceramente, por isso, às vezes, acordo sonhando com a hipótese de Noé e sua comitiva terem perdido o barco. De volta ao pesadelo, lamento a clareza que o resultado de domingo trouxe à relação de ódio de uma metade do Brasil com a outra. Certamente os que escolheram com o `’coração” votaram pela manutenção de seus empregos ou de quaisquer outros tipos de vantagens. Quanto aos que decidiram com o fígado, o único interesse foi prejudicar física, financeira ou socialmente o adversário, transformado em inimigo por razões de foro íntimo ou por necessidade de fôlego pessoal. Daí a escolha de governadores e parlamentares favoráveis à soberba, à superioridade absoluta e, por que não dizer, à manutenção dos guetos esfomeados, os quais se tornarão presas mais fáceis no futuro que eles já projetam para amanhã.
São os mesmos que se posicionam contra minorias e a favor de passar o rodo em questões que interessam aos agrupamentos que representam. A peleja ainda não está encerrada. Estamos no intervalo de uma disputa que, independentemente de uma eventual vitória do time da vanguarda no segundo turno, podemos creditar ao Brasil o título de campeão de votos absurdos. E aqui cabe lembrar mais uma curiosidade do pleito de domingo. Refiro-me ao voto envergonhado. Difícil acreditar que os consultados pelos institutos de pesquisa responderam com a devida coragem quando indagados a respeito do nome de sua preferência para a Presidência da República. O que me assusta é a facilidade que as pessoas têm para fingir, mentir e enganar sem se preocupar com o julgamento de Deus. Aprendem a mentir com seus gurus políticos.
Uma pena, mas o medo de dizer Lula da Silva e Jair Bolsonaro deve ter induzido as empresas e seus pesquisadores a erro. Portanto, ao contrário do que desejam alguns expoentes do operante e modernoso (supostamente moderno, porém de gosto duvidoso) tradicionalismo, os menos culpados de eventuais falhas relativas aos números eleitorais são os institutos. Afinal, ninguém deve ser acusado da mentira e da covardia alheias. Quanto ao conceito de conservadorismo, valho-me da tese de Mark Twain, pseudônimo do escritor e humorista norte-americano Samuel Langhorne Clemens, para quem os radicais inventam as ideias e, quando já as esgotaram de tanto uso, chamam os conservadores para adaptá-las. Como democrata e vanguardista assumido, prefiro a dor da disciplina à do arrependimento.