Tirano, cruel e assassino. Estas são algumas das características que os historiadores atribuíram a Nero — o imperador de Roma a partir do ano 54 d.C. — por quase dois mil anos.
Segundo vários cronistas, o jovem líder romano mandou assassinar a mãe, Agripina, a Jovem, e suas duas esposas: Cláudia Otávia e Popeia Sabina.
Além disso, ele foi acusado de iniciar o Grande Incêndio de Roma, que devastou grande parte da cidade por nove dias; é lembrado como um ferrenho perseguidor dos cristãos; e seu nome passou a ser sinônimo de degeneração por suas supostas aventuras sexuais, extravagâncias e excessos.
Também dizem que ele era arbitrário, petulante e buscava constantemente atenção.
No entanto, tudo isso pode ser um exagero ou, simplesmente, invenção. Estudos recentes sugerem que Nero, na realidade, não era tão ruim quanto se acreditava.
Esse lado muito menos conhecido do imperador é revelado em uma nova exposição no British Museum, em Londres, chamada Nero, the man behind the myth (“Nero, o homem por trás do mito”, em tradução literal), que desafia sua reputação grotesca.
“Ele teve o azar de ser o último imperador da dinastia romana júlio-claudiana. Então, quando ele morreu, houve um período de guerra civil e caos, e depois disso, uma nova dinastia chegou ao poder. E todas as histórias sobre Nero foram escritas sob essa nova dinastia, que teve que se legitimar e representar o período anterior da pior forma possível”, conta Francesca Bologna, a curadora da mostra, à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.
“Por isso não temos uma visão objetiva dele. É incrível pensar em como se escreve a história e em como se manipula para passar algumas mensagens”, completa.
A seguir, sete coisas que talvez você não saiba sobre ele e que, de uma forma ou de outra, levantam a questão: era Nero realmente um imperador tirano, cruel e assassino?
1. Um imperador popular
Nero tinha apenas 16 anos quando assumiu como quinto imperador de Roma.
Ele chegou ao poder em meio a um forte clamor popular por mudanças e grandes expectativas: acreditava-se que com ele começaria uma nova era de ouro.
Apesar de sua inexperiência, esse líder jovem e enérgico adotou políticas que o tornaram popular.
Medidas administrativas abrangentes, incluindo reformas fiscais e monetárias, assim como grandes projetos de construção, estiveram entre suas realizações mais reconhecidas.
Ele também melhorou o sistema de abastecimento de alimentos em Roma e distribuiu moedas ao povo. Tudo isso fez com que as pessoas acreditassem que o imperador se preocupava com suas necessidades.
Segundo a exposição do British Museum, sua imagem era tão positiva que imitavam até seu visual: seu corte de cabelo virou moda, e seu rosto foi gravado por meio de grafites em diferentes áreas do Império.
“As evidências sugerem que Nero era adorado pelo povo e contrastam com a imagem pintada por escritores antigos hostis após sua morte”, diz a mostra.
Mas, apesar da adoração do povo, muitas de suas políticas irritavam a elite e os mais ricos. E isso explica, em parte, por que adquiriu uma reputação tão ruim.
“Essa é provavelmente uma das razões pelas quais temos uma imagem tão negativa dele, porque a elite é quem escreveu os livros de história”, afirma Bologna.
De fato, a maior parte do que foi transmitido sobre Nero vem de três historiadores: Tácito, Cassius Dio e Suetônio, todos membros das mais altas esferas políticas e oponentes claros de seu governo.
2. Um artista equivocado?
Nero se tornou o primeiro imperador a se apresentar publicamente no palco.
Quando criança, ele teve aula de música e adorava corridas de bigas, um dos esportes mais populares na Grécia e na Roma antiga. Também era apaixonado pelas lutas de gladiadores.
Assim, a organização de espetáculos e o oferecimento de entretenimento de todos os tipos para o povo era um elemento muito importante de seu império.
Isso, sem dúvida, aumentou sua popularidade e, segundo a exposição do British Museum, provavelmente o ajudou a ganhar apoio para sua causa política.
Mas, mais uma vez, este lado artístico também lhe rendeu duras críticas, sobretudo dentro do Senado e entre a elite.
Mais tarde, após sua morte, a ideia de que Nero era um “artista equivocado” permaneceria.
3. Uma relação complexa com a mãe
De acordo com a exposição do British Museum, durante os primeiros anos de Nero no poder, Agripina — uma mulher com habilidades políticas notáveis — desempenhou um papel importante, influenciando fortemente na tomada de decisões e agindo quase como cogovernadora.
Mais tarde, isso gerou uma tensão com seu filho, que quis se livrar dela.
É que em uma sociedade marcadamente patriarcal, o poder de uma mulher não era bem visto. O político e historiador Tácito, de fato, desdenhou de Nero por ser “governado por uma mulher”. E eles foram até acusados de “incesto”.
A evolução da relação entre Nero e Agripina é bem ilustrada em três moedas de ouro emitidas na época: pouco depois de Nero se tornar imperador, uma moeda retratava ele com a mãe de perfil, nariz com nariz.
Um ano depois, uma segunda moeda foi cunhada representando ele e sua mãe em paralelo.
Finalmente, Agripina desaparece completamente em uma terceira moeda.
Por volta do ano 59 d.C., Agripina — já retirada do palácio— morreu, e Nero foi apontado como responsável. O imperador justificou a morte da mãe garantindo que ela planejava assassiná-lo.
“Ele estava definitivamente envolvido na morte da mãe, isso é certo. Mas nunca saberemos qual foi o verdadeiro motivo de sua morte. É muito provável que tenha havido um elemento político por trás; dizem que Agripina estava tentando conspirar contra Nero. É verdade? Possivelmente, mas não sabemos ao certo”, diz Bologna.
A primeira esposa de Nero, Cláudia Otávia, também foi crucial em sua ascensão ao poder. Mas o amor durou apenas alguns anos: por volta de 62 d.C, ela — que era muito popular na cidade — foi executada após ser banida. Reza a lenda que Nero a acusou de adultério, o que foi questionado na época.
Finalmente, o imperador se casou com Popeia Sabina, que engravidou de uma menina, mas ambas morreram antes dela dar à luz. Nero, mais uma vez, foi apontado como culpado.
“Que Nero também tenha assassinado sua segunda esposa parece extremamente improvável. A história, que diz que ele chutou a barriga dela, parece muito falsa”, avalia Bologna.
4. Ele realmente causou o Grande Incêndio de Roma?
Talvez um dos mitos mais importantes da história de Nero tenha a ver com o Grande Incêndio de Roma, em julho de 64 d.C., três meses antes de ele completar 10 anos no poder.
Os incêndios eram comuns, mas este teve uma dimensão sem precedentes: durante nove dias as chamas consumiram ferozmente tudo que estava em seu caminho, de um lado a outro da cidade. A alta densidade populacional e a precariedade das moradias fizeram desta uma catástrofe perfeita.
Os detratores de Nero garantiram que sua responsabilidade pela tragédia fosse estampada nos livros de história, consolidando sua má reputação.
Não apenas foi dito que foi ele quem começou o incêndio, como também que ele “tocava violino enquanto Roma queimava”.
Os historiadores Tácito, Cassius Dio e Suetônio escreveram vividamente sobre o caos e a destruição.
No entanto, pesquisadores modernos afirmam que essas acusações são evidentemente absurdas e que, na verdade, os violinos não foram inventados até o século 16.
“Nero nem sequer estava em Roma naquele momento, e correu para a cidade quando soube do incêndio. Por que você colocaria fogo na sua própria capital? Não faz sentido”, diz Bologna.
Por sua vez, o próprio Nero, para apaziguar as acusações contra ele, culpou os cristãos pelo incêndio, que foram executados em massa. Esta decisão o levou a entrar para a história como um dos maiores e mais ferrenhos perseguidores de cristãos da história.
Mas, mesmo neste ponto, há controvérsias sobre o papel que Nero desempenhou, e alguns historiadores afirmam que exageraram sobre seu papel na execução.
“Isso, é claro, cimentou a percepção negativa em relação a ele”, observa a curadora da mostra do British Museum.
5. Promotor de grandes projetos
Depois que o incêndio destruiu completamente três distritos de Roma e deixou outros sete em ruínas, Nero teve que reconstruir a cidade e fez isso por meio de um plano ambicioso.
De acordo com a exposição do British Museum, a restauração da cidade foi bem recebida por seu potencial de “embelezar” a capital do império.
Uma das obras mais importantes foi a Domus Aurea (Casa Dourada), um grandioso palácio que ocupava cerca de 50 hectares. Incrustações de ouro, pedras preciosas e marfim foram incluídas em seu design, que representava o espaço adequado para o poderoso imperador.
Com sua arquitetura inovadora e decoração luxuosa, a nova residência imperial inspirou outras mansões e vilas aristocráticas onde foram erguidas construções para o passatempo dos romanos.
A Domus Aurea não foi concluída antes da morte de Nero e foi amplamente criticada por seus oponentes políticos, que questionavam seu gosto pelo luxo e extravagância.
Mas, muito além desta obra imperial, Nero estava particularmente interessado em projetos de engenharia moderna e arquitetura inovadora. Ele construiu anfiteatros, mercados de comida, casas novas para as pessoas afetadas pelo incêndio e até termas públicas.
Muitas de suas obras, no entanto, foram destruídas mais tarde. Para Francesca Bologna, se isso não tivesse acontecido, seriam seu grande legado.
“Depois de Augusto, ninguém mudou Roma tanto quanto Nero. Ele fez construções realmente incríveis, mas infelizmente elas só ficaram consagradas em moedas ou descrições”, diz.
6. Guerra e diplomacia
Nero herdou um império em um período de crescente tensão com seus rivais.
E para alguns historiadores, a maneira como ele lidou com esses conflitos é um de seus grandes legados.
Na exposição no British Museum, é dito que ele reagiu misturando a força militar com a diplomacia, ao mesmo tempo que projetava uma imagem de um líder forte protetor do Império.
Um bom exemplo é o que aconteceu com o Império Parta e o controle da Armênia. Após anos de conflito armado, Nero acabou resolvendo o problema diplomaticamente: concedeu ao príncipe parta Tirídates a possibilidade de governar a Armênia, mas apenas se ele fosse coroado por um imperador romano.
E assim aconteceu: no ano 66 d.C. Nero o coroou rei da Armênia em uma cerimônia incrivelmente bem-sucedida que manteve a paz por muitos anos entre Roma e Pártia (região histórica no nordeste do atual Irã).
“Ele assumiu em um momento de tensão dentro do Império Romano, havia muito conflito, e ele teve que lidar com tudo isso. E fez isso, encontrou soluções diplomáticas, e é por isso que a diplomacia ao invés da guerra é um de seus legados”, diz Bologna.
No entanto, uma versão diferente começou a circular após sua morte: o historiador Suetônio disse que a atitude de Nero foi, em última análise, uma “humilhação” para os romanos.
Mas, de acordo com pesquisas do British Museum, o imperador correspondeu às expectativas de seu povo no que se refere a assuntos militares.
7. Sua morte e o aparecimento de ‘falsos’ Neros
Para entender quem foi Nero, é preciso considerar como ele morreu.
Apesar de sua popularidade, a elite nunca o suportou e se sentia constantemente ameaçada por suas políticas.
As conspirações contra ele aumentaram ao longo dos anos, e finalmente o Senado o declarou como inimigo do Estado.
“No final, ele não teve outra escolha a não ser acabar com sua vida”, diz a exposição do British Museum.
E foi assim que em 68 d.C, aos 30 anos, Nero morreu, encerrando a dinastia júlio-claudiana. Sua popularidade continuou após sua morte, alimentando profecias que diziam que ele voltaria. Vários “falsos” Neros apareceram e ganharam apoio entre o povo.
A exposição em Londres termina com uma pergunta: agora que você sabe mais sobre Nero, acha que ele foi um bom imperador?
Possivelmente, não há uma resposta correta. Mas o que está claro é que seu legado é muito mais complexo do que simplesmente dizer que ele foi um imperador “tirano, cruel e assassino”.