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Risco de apagão ameaça plano de reeleição de Bolsonaro

No ano anterior à eleição, o presidente da República enfrenta uma crise hídrica que ameaça o fornecimento de energia elétrica nas casas, comércios e indústrias. Até aí, o ano pode ser 2021 de Jair Bolsonaro ou 2001, do então presidente Fernando Henrique Cardoso.

Há 20 anos, a continuação do roteiro envolveu um racionamento de energia na maior parte do país, com a redução compulsória de 20% do consumo de eletricidade. O racionamento durou até o início de 2002 e é apontado como um importante fator para explicar a derrota do PSDB na eleição presidencial, quando Luiz Inácio Lula da Silva, do PT, conseguiu ser eleito pela primeira vez.

Duas décadas depois, o que a crise atual tem a ver com os problemas no setor elétrico que afetaram o Brasil em 2001 – e o que mudou de lá para cá?

1. Véspera da eleição
O primeiro fator que aproxima as duas situações é o momento: as duas crises acontecem um ano antes da eleição presidencial.

Especialistas do setor elétrico com experiência na formulação de políticas públicas dizem que falar em racionamento de energia ou apagão é politicamente delicado em qualquer momento, mas o assunto fica ainda mais complicado perto de uma eleição.

“A experiência em 2001 deixou um trauma em qualquer político. Muitos atribuem um peso grande ao racionamento na perda da reeleição do partido que estava no governo (PSDB)”, diz Mauricio Tolmasquim, professor do programa de planejamento energético da COPPE, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Ele, que é ex-presidente da Empresa de Pesquisa Energética e já foi ministro interino e secretário executivo (2003 a 2005) de Minas e Energia, diz que racionamento é “palavra proibida” no governo.

Apesar da questão política, ele defende que, tecnicamente, diante da atual situação, o ideal seria estudar os impactos de um eventual racionamento pequeno.

“Eventualmente, os danos em termos de inflação podem até ser maiores não racionando”, diz. “Deveriam estudar alternativas e analisar prós e contras, mas nem estudo se faz porque, se vazar que tem um estudo desse, tem um impacto político muito grande.”

A doutora em economia e especialista no setor de energia Amanda Schutze diz que o “medo” da palavra racionamento “é muito grande e atrapalha a comunicação com o consumidor”.

“É importante comunicar ao consumidor a possibilidade, o que está acontecendo. E falar em racionamento acaba que fica muito tenso – tanto por causa do resultado que foi o racionamento em termos eleitorais no passado como porque falar para uma pessoa que ela não vai ter eletricidade atualmente é inaceitável”, diz.

Schutze, que também é professora da PUC-Rio e coordenadora de energia do Climate Policy Initiative (CPI), avalia que “o racionamento pode fazer com que uma pessoa perca uma eleição, porque afeta demais no cotidiano”.

Diante das comparações, o próprio ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, fez menção à crise de 2001 em pronunciamento na TV. Ele disse que o atual quadro gerado pela escassez de chuvas “provocou a natural preocupação de muitos brasileiros com a possibilidade de racionamento de energia, como aconteceu em 2001”.

Depois de dizer que o sistema elétrico brasileiro evoluiu muito nos últimos anos, o ministro pediu o uso consciente e responsável de água e energia e concluiu dizendo que estava, “com serenidade”, “tranquilizando a todos”.

2. Falta de chuvas
A hidrologia ruim (ou, simplesmente, a falta de chuvas) é outro importante fator em comum da crise de 2001 com a atual.

Há vinte anos, a estiagem prolongada, que reduziu níveis dos principais reservatórios de água no país, era apontada como um dos motivos para a crise.

Agora, o governo federal aponta que a escassez de águas que hoje atinge os reservatórios das hidrelétricas, principalmente no Sudeste e no Centro-Oeste, é a maior dos últimos 91 anos.

E os reservatórios dessa região são extremamente importantes para o sistema elétrico, como explica Tolmasquim.

“O nível dos reservatórios das regiões Norte, Nordeste e Sul estão relativamente bem, mas o grande problema é que estes reservatórios são pequenos em relação ao tamanho do Brasil. O grande reservatório, a grande caixa d’água do sistema elétrico brasileiro, está na região Sudeste/Centro-Oeste, que concentra 70% da capacidade de armazenamento do sistema.”

Schutze defende que, apesar da importância, esse não é o único fator para explicar a crise atual.

“Uma crise nunca é causada por uma única coisa – é por muitos fatores juntos. E aí, quando você não faz um bom planejamento, você pode torcer para chover muito e tudo dar certo no final. Mas um sistema como o nosso não pode contar com isso, tem que ser feito para conseguir operar em momento de hidrologia ruim”, diz.

Nem o fato de ser a pior hidrologia em nove décadas, segundo ela, justifica a situação.

“A gente já está tendo essa baixa dos reservatórios há mais de nove anos. Então isso vem vindo, não é coisa que pegou todo mundo de surpresa.”

“Existe falha no planejamento. É necessário tomar a decisão de utilização da água armazenada hoje em detrimento de sua utilização no futuro. Quando ocorre a decisão de manter, as termelétricas são acionadas. No entanto, as térmicas não foram acionadas no período adequado. Esse atraso colaborou para o esvaziamento dos reservatórios e a situação atual”, diz Schutze.

3. Sistema mais robusto
Se o timing eleitoral e a falta de chuvas são semelhanças entre as duas crises, uma importante diferença é que as condições de oferta de energia melhoraram depois da crise energética dos anos 2000.

Tolmasquim diz que o sistema elétrico hoje é muito mais robusto e resiliente do que em 2001. “Entre 2001 e 2020, a capacidade instalada cresceu 133%, ao mesmo tempo em que o PIB cresceu 44%”, diz.

Outro ponto importante é que a participação das hidrelétricas é menor hoje do que era há duas décadas.

De lá para cá, segundo o Ministério de Minas e Energia, a dependência das hidrelétricas caiu de 85% para 61%, com aumento da participação de fontes limpas e renováveis, como eólica, solar e biomassa – mas também com o aumento do uso de usinas termelétricas com combustíveis fósseis, mais caras e poluentes.

A terceira explicação relativa à melhora do sistema está na transmissão da energia.

Nesse período, ele aponta, a capacidade do Sul de enviar energia para Sudeste e Centro-Oeste aumentou 61%. Ao mesmo tempo, a capacidade de o Norte e o Nordeste levarem energia para o Sudeste e Centro-Oeste aumentou 14 vezes.

Apesar desses avanços na oferta de energia, há uma série de políticas (“ações de eficiência energética e de resposta da demanda”) que deixaram de ser aplicadas ou foram aplicadas de forma não satisfatória, segundo Amanda Schutze.

“Toda a nossa política de eficiência energética nunca foi baseada num planejamento de longo prazo – ela sempre ocorreu em reação à dificuldade de atendimento da demanda de eletricidade”, diz a professora.

Avançar na área de eficiência energética seria uma forma, diz ela, de conseguir melhorias consistentes e duradouras no consumo de energia elétrica.

Schutze aponta a necessidade de uma modernização no setor. Um dos pontos levantados por ela é o modelo de remuneração das distribuidoras de energia, baseado na quantidade de energia consumida.

“Se você tiver uma redução (no consumo de energia), a distribuidora, momentaneamente, perde (até ela conseguir ter o próprio próximo reajuste). O fato dela receber e poder ganhar em cima da quantidade de energia vendida faz com que ela não tenha incentivo de promover políticas que façam com que você reduza a quantidade demandada de eletricidade”, diz a professora.

Em vez dessa tarifa, Schutze sugere uma que seja baseada em uma parte fixa (independente da quantidade de energia consumida) e uma variável.

Uma política que Schutze considera boa, mas destaca que “não engrenou” no Brasil, é a tarifa branca. Ela diz que a maioria dos brasileiros desconhece essa opção, que, diferente da modalidade convencional (valor único de tarifa), possui valores diferentes ao longo do dia.

A tarifa mais elevada é no horário de pico e a mais baixa nos horários de menor consumo. Isso significa que a tarifa branca é indicada para quem consegue concentrar seu consumo nos períodos fora de pico – como uma pessoa que trabalha fora de casa em um horário que abrange o fim da tarde e início da noite, deixando de consumir energia nesse período.

4. Dependência maior
O setor elétrico brasileiro ficou mais robusto na oferta de energia, mas também estamos cada vez mais dependentes de energia elétrica. E é por isso que os especialistas dizem que apagões e um eventual racionamento afetariam ainda mais o cotidiano dos brasileiros hoje do que afetou em 2001.

“Imagina você chegar para alguém e falar que vai acontecer o que aconteceu no começo dos anos 2000 – que a gente vai ter que reduzir o consumo em 20%? Imagina a gente, trabalhando de casa, reduzir o consumo de eletricidade em 20%? Nossa vida depende disso”, diz Schutze. “Em termos políticos, hoje falar de racionamento é bem mais difícil do que foi em 2000”.

A situação também é delicada porque a própria recuperação da atividade econômica, se acontecer, vira um ponto de pressão na questão energética.

A produção industrial brasileira – que depende muito da eletricidade para funcionar – cresceu 1,4% em maio, na comparação com abril, após três meses consecutivos de queda, segundo os dados mais recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Ao mesmo tempo, não é a só a conta de luz que fica mais cara. Os aumentos nas tarifas de energia também afetam o preço de diversos produtos e serviços, pressionando a inflação em um momento de atividade muito mais fraca que o desejável.

‘Na mão de São Pedro’
Se um eventual racionamento em 2021 é uma dúvida, o risco de apagão já é real, confirmam os pesquisadores ouvidos pela BBC News Brasil.

Esse risco é maior no horário de pico, de 18h a 21h no período de inverno.

“O consumo aumenta e a capacidade da hidrelétrica de gerar uma certa quantidade muito grande (de energia) num certo momento de tempo é menor quando o nível do reservatório está mais baixo”, explica Tolmasquim.

Segundo ele, o risco que já existe hoje tende a subir, se não houver chuva suficiente.

“Esse risco já existe porque os reservatórios já estão baixos e, conforme baixar mais, vai aumentando esse risco. Mas não quer dizer que vai acontecer, é claro. Existe probabilidade, um risco maior do que o normal.”

“E também, como a gente tem que usar muito a linha de transmissão, apesar de todos os reforços, você sempre pode ter de as linhas ficarem muito carregadas em algum momento e isso também aumenta o risco.”

Outra certeza é que a crise no setor continuará a ser sentida pelos consumidores, no mínimo, por meio da conta de luz. O aumento dos custos – como do acionamento de termelétricas e da manutenção da tarifa verde em 2020 devido à pandemia – continuará a ser sentido pelos consumidores.

No fim de junho, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) aprovou o reajuste de 52% na bandeira tarifária vermelha patamar 2, que é a cobrança adicional nas contas de luz quando aumenta o custo de produção de energia.

“Esse reajuste que foi feito não vai cobrir ainda todos os custos, teria que ser maior. Então, provavelmente ainda terá outro ajuste esse ano. Se não houver esse ano, vai ter que ter um ajuste maior em 2022 para compensar o que não foi coberto”, diz Tolmasquim.

E as chuvas?
“Quanto à situação hidrológica, vai depender muito de como vai ser a partir de novembro. Se tivermos um bom verão, os reservatórios vão se recuperar, pode desligar algumas térmicas, e pode voltar eventualmente para bandeira verde ou amarela. Mas estamos na mão de São Pedro”, diz o professor.

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