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Roda de capoeira vira espaço na luta pela igualdade

Foto: Marcelo Casal Jr/ABr

O ritmo lento do berimbau dita um jogo que ainda é marcado pela desigualdade de gênero. Na roda da capoeira, a arte que se desenrola ao som de música e sob movimentos de luta e dança revela os mesmos desafios que as mulheres enfrentam em outros espaços da sociedade.

No Brasil, estima-se que 35% dos praticantes de capoeira são mulheres. O número daquelas que chegam à condição de mestras, no entanto, ainda é muito reduzido quando se considera a capoeira de angola, tipo mais tradicional. Mesmo presentes, elas ainda enfrentam preconceito e outros tipos de violação.

No Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, lembrado na quarta, 25, especialistas avaliam que a capoeira pode servir como estímulo ao resgate da identidade racial de mulheres. Entretanto, a prática tem sido descaracterizada ao longo dos anos e afastado a presença feminina, principalmente, negra.

Inclusão – Capoeirista há quase 40 anos, Rosângela Araújo, conhecida como mestra Janja, percebe as diferenças de tratamento entre homens e mulheres e luta, na roda e no meio acadêmico, para romper com a cortina da invisibilidade que foi jogada sobre as mulheres.

“A roda da capoeira é de fato uma metáfora da roda das relações sociais, da roda do mundo, da grande roda, como a gente diz. E dentro da capoeira os desafios são os mesmos que nós vivenciamos na sociedade, com as especificidades que estão atreladas à prática”, declara Janja, uma das capoeiristas mais experientes do Brasil.

Graduada em educação física e história, ela explica que a capoeira sempre foi considerada um espaço masculino e tem sua imagem historicamente atrelada à valentia, destreza, ocupação e defesa de território. Entre os homens, era muito comum, durante os séculos 19 e 20, que fossem formadas as chamadas maltas, grupos de capoeira que usavam navalhas ou facas durante os movimentos.

“Eu poderia dizer, sem medo de errar, que capoeira é um espaço misógino, LGBTfóbico e, mesmo do ponto de vista intragênero, ela estabelece um padrão de masculinidade que elimina muitos outros homens, inclusive heterossexuais, dentro de uma leitura da cultura da valentia que marca a história da capoeira”, completa Janja que é fundadora do Instituto Nzinga de Estudos da Capoeira Angola e de Tradições Educativas Banto no Brasil.

Janja relata que se encantou pela linguagem corporal da capoeira de Angola ainda no final dos anos 70. Além de encontrar uma forma de atender seu interesse em trabalhar a questão do corpo na faculdade, Janja conseguiu, por meio da capoeira, ampliar seu campo de formação e redirecionar sua carreira intelectual e acadêmica para o estudo do racismo.

“A prática da capoeira me inseriu num universo que até então eu não havia entrado pela via escolar, o universo de estudos sobre negros, sobre a história da África, do negro no Brasil e, consequentemente, sobre a história da cultura afro-brasileira que se desdobrou na área que atuo hoje, a pesquisa de relações raciais no Brasil”, conta a integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

Invisíveis – Janja destaca que há um grande número de pesquisadores que se dedicam ao estudo da capoeira, mas a questão de gênero nesse campo ainda é pouco explorada.

Segundo a mestra, a imagem das mulheres na capoeira estava inicialmente ligada à ideia de composição de paisagens, como espectadoras ou acompanhantes de capoeiristas.

A presença feminina também estava vinculada às “ganhadeiras”, mulheres que trabalham vendendo quitutes, como as baianas do acarajé. Nas últimas décadas, pesquisas têm apontado que as mulheres começaram a ser protagonistas do ato de lutar e jogar capoeira.

A mudança sobre a percepção da presença das mulheres na roda também é apontada por capoeiristas da nova geração, como Larissa Ferreira, professora de dança do Instituto Federal de Brasília (IFB).

“A presença da mulher na capoeira é extremamente importante e é também um modo de reivindicar esse direito de existir em qualquer espaço”, declara.

Larissa começou a praticar capoeira aos 7 anos como uma brincadeira entre irmãos nas ruas de Salvador. “Lá, a prática da capoeira é muito cotidiana, é uma capoeira que está nas ruas, nos bairros e está muito ligada à ideia de ludicidade mesmo. Ela está na escola e nas brincadeiras das crianças”, conta.

À medida que foi se envolvendo mais com a prática, a capoeirista relata que se sentiu desqualificada em muitas situações. “Sempre que ia compartilhar algo sobre a capoeira, eu via um questionamento, uma pergunta do tipo “ah, mas você joga mesmo? Você joga bem?” Sempre tentando desqualificar a presença da mulher na capoeira. É um imaginário baseado num papel normativo da mulher ligado à ideia de fragilidade”, afirma Larissa que faz parte do núcleo Nzinga de capoeira, em Brasília.

Luta por direitos – Além da diversidade estética, considerada importante para um jogo em que os movimentos do corpo revelam valores e a alma do capoeirista, a presença feminina afasta da capoeira a ideia de que a violência é algo natural do jogo.

“[A capoeira] É também um espaço de sociabilidade. É nesse sentido que a gente entende, como instrumento de luta por direitos, pela liberdade e dignidade humana”, explica Janja.

Ao contrário da maioria dos esportes em que mulheres e homens disputam em categorias distintas, na capoeira homens e mulheres se posicionam no mesmo espaço, em um sistema integrado.

Para capoeiristas e especialistas, essa interação é uma oportunidade para corrigir atitudes sexistas.

“A mulher, sendo respeitada e valorizada numa roda de capoeira, garante que esse espaço seja cada vez mais democrático, onde a diversidade e a convivência harmoniosa entre os diferentes significam um exemplo de tolerância e convívio social nesse mundo tão cheio de preconceitos e discriminações”, afirma a diretora de Proteção ao Patrimônio Afro-Brasileiro da Fundação Cultural Palmares, Carolina Nascimento.

História e identidade – A capoeira, apesar de ser originalmente uma manifestação nascida entre os negros escravizados como forma de resistência, tem passado por um processo de perda das referências africanas. Esse fenômeno, entre outros fatores, tem afastado mulheres negras da prática, avaliam especialistas.

“O racismo descolou essa relação histórica entre negritude e capoeira e criou apropriações distorcidas, como a capoeira gospel”, explica Larissa.

Ela ressalta que aprendeu com seus mestres que capoeira não é incolor e que o racismo tem impedido que a prática seja um espaço onde a mulher pode resgatar sua identidade.

“A capoeira tem cor, tem uma história. Acho que ela faz esse religar, traz um pertencimento que não é somente racial, mas também étnico, porque envolve ancestralidade, símbolos culturais e afirmação da negritude”, completa.

Desde 2014, a roda de capoeira é reconhecida como patrimônio cultural imaterial da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Em 2008, a prática recebeu o título de Patrimônio Cultural Brasileiro.

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