Parafraseando o imortal Milton Nascimento, há um menino, há um moleque morando sempre em meu coração. Toda a vez que o adulto balança ele vem para me dar a mão. Embora saiba que o ontem já se foi e que o anteontem não volta mais, recorro à memória toda vez que tenho necessidade de esquecer que meu mundo, que já se resumiu a festivais, hoje é muito mais amplo. Não preciso de Jair, de Bolsonaro, do Messias, tampouco de Luiz Inácio ou de Lula para viver. Entretanto, é minha inspiração que me faz sonhar acordado com a volta àquele pedaço de chão que chamava eufemisticamente de campo de futebol. Eram dois tocos, muita pedra, cacos de vidro, pregos enferrujados e meninos preocupados somente com a alegria pré ou pós-trabalho escolar. Não fazia parte do meu diário de bordo ser craque, rei, mito ou milionário.
Me bastava ser peladeiro. Queria ser apenas o que podia ser. E já era muito. Os que ascenderam viravam meus ídolos, mas permaneceram amigos de infância, vizinhos, colegas de bairro. Muitos da minha geração conviveram – e convivem – com Zico, Roberto Dinamite (+), Junior, Leandro, Jairzinho, Adílio, Paulo César Caju, Dé, Andrade, Romário, Zinho, Djalminha, Nunes, Dario, Reinaldo, entre outros. Os vivos são amigos, mas até hoje não admitem ser chamados de “parças”. Além de ambígua, a conotação é parcimoniosa demais. Como jogador na infância, como torcedor e, depois, como repórter esportivo, minha primeira, segunda e terceira opções jamais passaram do convívio civilizado.
No meu tempo, o mesmo do Jair, jogar futebol significava vestir a camisa, o calção, calçar a chuteira de couro cru e partir para a batalha. Chuteira com cores berrantes, calções acima do púbis, lacinhos no cabelo ou penteados desconcertantes não eram recomendáveis. Literalmente, o pau começava a cantar na escolha dos times: os dois melhores não podiam estar do mesmo lado. Eles tiravam par ou ímpar e escolhiam seus respectivos companheiros de pelada. Ser escolhido por último era uma grande humilhação. Tempos de vacas magérrimas, um time jogava sem camisa e o outro com camisa. O pior de cada equipe era o goleiro, a não ser que tivesse alguém com vocação para guarda-metas. A falta de goleiros impunha um rodízio: todos agarravam até sofrer um gol. Engolir um peru era sinônimo de jubilação.
A regra geral é que os piores jogavam naturalmente na zaga. O dono da bola jogava sempre no mesmo time do melhor jogador. Não tinha juiz. As faltas eram marcadas no grito: se um de nós fosse atingido, gritava como se tivesse quebrado uma perna. Quando a bola saía pela lateral, o grito era do tipo possessivo: “É nossa!”. A norma também se aplicava aos escanteios. Lesões como arrancar a tampa do dedão do pé, ralar o joelho, sangrar o nariz e outras menos dramáticas eram normais. Para isso existia o bom e recomendadíssimo Merthiolate, aquele que arde igual a porta de entrada do inferno e que cicatriza inclusive feridas decorrentes do confisco de joias apropriadas desonestamente. Lances polêmicos eram resolvidos no grito ou, se fosse o caso, na porrada. Nem em sonho, o pega para capar incluía vandalismo sobre prédios representativos da República.
Havia disputa. Nela, os adversários não viravam inimigos. O capitão falava pela maioria nas reprimendas com o outro lado. Ele nunca usava as prerrogativas do STF para ficar em silêncio. Nas quatro linhas, o capitão também não mandava em coronel ou general. Deixa pra lá. Com ou sem quebra-pau, a partida acabava quando todos estavam cansados, quando anoitecia ou quando a mãe do dono da bola mandava ele ir para casa. Mesmo com 15 x 0 para um dos lados, a pelada acabava com o famoso “quem faz, ganha”. Rua de baixo contra rua de cima – valendo garrafa de Coca-Cola e rum Montilla – e o estridente grito “paroooou”, ecoado sempre que se aproximava um carro, uma mulher grávida ou uma criança. Não existia Adidas, Nike, Puma. Era Kichute ou descalço. E o goleiro não usava luvas. No máximo, havaianas na mão.
O melhor de tudo eram os apelidos. Por exemplo, joguei com Tição, Pezão, Pombo, Peruca, Jerico, Porquito, Chocolate, Jorge Caraca, Chupeta, Ximbica, Remela, Piolho, Toco, Toquinho, Boquinha, Ninica, Caramelo, Timbó, Cuca, Beludo, Rolinha, Caipora e Saci. Nenhum deles era “parça”, mas não se incomodava com as alcunhas. Como hoje a maioria dos pernas de pau com cabelinhos descoloridos prefere ser chamado pelo nome composto – os técnicos não são diferentes -, fiquei positivamente surpreso ao ser informado que o Cruzeiro de Minas Gerais estaria sondando um novo treinador português chamado Rolão Preto, em substituição ao Pepa. Que fofo! Ordem dada, ordem cumprida. Lembrou tua infância? Então, fostes uma criança e um torcedor normal, sem frescuras, chuteiras cor de rosa, brincos na orelha ou patriotismo sem nexo. Nada contra, mas, assim como Jair e Michelle Bolsonaro, opto por um denunciante silêncio.