O poeta abestado
Rosa choca (sem trocadilhos) e Leo é expulso de confraria
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emLeonardo, o Leo, estava enlouquecendo lentamente. Não rasgava dinheiro, que não tinha. Não saía nu pelas ruas de São Paulo, estava quarentenado e fazia um frio do caramba. Não se exibia pela janela do apartamento, não estava com um corpício tão sarado assim. Não ouvia estrelas, mas o senso, este, já tinha voado para bem longe.
Os primeiros sintomas se manifestaram quando brincava com uma moça no Face. Era evangélica, mas bonitinha, inteligente e divertida, e Leo achou que ela daria boas risadas ao ler um poema anticlerical que escrevera, no estilo Guerra Junqueiro, com umas pitadinhas de erotismo. Em vez disso, tomou uma bronca de criar bicho, pontilhada de frases como “Meu Deus é um deus de ira, vai te castigar!”
Mas o ponto a ressaltar não é a reação da crente, e sim por que diabos ele enviou um poema anticlerical e levemente erótico a uma evangélica. Nem era paquera, ele estava mais a fim de brincar do que de traçar a criatura (aliás, nem podia, sexo virtual quando muito, devido à quarentena e à razoável distância entre São Paulo, SP, e Rio Branco, AC). Resposta: porque havia perdido o senso crítico, estava enlouquecendo despacito.
Mas isso foi apenas o esquenta para os entreveros de Leo com a Triboilustríssima. Era com esse termo que designava uma associação literária na qual havia ingressado nem sabia como, a Ilustre Ordem dos Poetas Brasileiros. Entre seus confrades havia escritores talentosos, com destaque para os criadores de poemas sensuais e eróticos. E também oligopoetas, que babavam e se mijavam de emoção quando conseguiam rimar amor e flor.
Os primeiros despertavam sincera admiração (e uma pontinha de inveja); os segundos, dava vontade de pegar no colo e ninar, até que dormissem e esquecessem suas pretensões literárias. Mas todos, talentosos ou oligosos, tratavam-se por Ilustríssimo poeta, Excelentíssimo poeta, Venerável poeta e assim por diante. (Daí o Ilustríssima Tribo, ou Triboilustríssima.)
Quando ele insistiu que o chamassem de Leo, ou, quando muito, de Leonardo, foi alvo de críticas, de início silentes, depois estridentes: “esse poetinha recém-chegado está zombando de nossas mais caras tradições!” E ele não estava. Tá bem, vá lá, estava, mas só um pouquinho. E suas ironias vinham recheadas de carinho.
Bem que Leo tentou. Cobriu de elogios os versos de que gostava, garimpou palavras positivas para os poemas razoáveis, envolveu numa piedosa cortina de silêncio os oligopoemas. E aí pisou na bola. Ansioso por ser lido, e, certo, tendo perdido o senso, ignorou as imagens de santos e citações bíblicas que pontilhavam a página da Ordem e postou um de seus poemas prediletos. Era uma ode a uma mulher que manejava seus dedinhos pelo corpo com o virtuosismo de uma harpista. Foi um escândalo, chamaram-no de tarado para baixo.
Leo não foi expulso da Triboilustríssima, mas sobreviveu por pouco. Para se redimir, atendeu a um pedido da administradora do grupo e transformou em prosa poética um poema sobre uma prostituta. Ficou bom, com imagens fortes mas sem um único termo vulgar. Feliz com os elogios, o Abestadíssimo poeta imaginou que a crise ficara para trás. Ainda assim, se tivesse um mínimo de lucidez, ficava quieto no seu canto e esperava os abutres irem embora. Ao invés disso, ofereceu carniça para atraí-los!
O pretexto para a mobilização dos bem-pensantes foi a postagem de um poema erótico, no qual Leo descrevia os movimentos e cores de um corpo nu de mulher, que dançava para ele. Os versos finais eram: “Unhas pintadas de azul, nos dedos/Que brincam com dobrinhas/De pele macia e permitem ver/O rosa…”.
Se o imbecil tivesse mencionado penas, ou uma estampa de oncinha, aliii, quem sabe passava. Penas remetem a aves, voo, liberdade; oncinha, a algo perigoso, selvagem. Imagens ousadas, mas quietinhas no plano simbólico. Mas rosa… a coisa é rosa mesmo, o poema é de uma crueza imperdoável. E o poema do rosa (não da rosa) foi apenas o ponto de partida. Sucederam-se acusações de inimigo dos valores conservadores (sim, era), de detestar a exibição de símbolos religiosos (não detestava), de zombar das tradições da Ordem (sim, zombava, mas com carinho, sin perder la ternura). As pressões aumentaram, a gastura de Leo também, até que pediu o seu boné e se desligou da Ordem.
É essa a triste situação atual de Leo, a cada dia mais louco e abestado. O jeito, para sobreviver, é parafrasear Drummond, em Consolo na Praia: “Perdeste o grupo literário/Não tentaste conquistá-lo de verdade/Não contas com amigos poetas/Mas tens o rosa”.