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Roteirista perde emprego ao misturar alhos com bugalhos

As palavras começavam a lhe fugir. Para Henrique, roteirista de televisão e escritor bissexto, isso era a morte.

Elas não fugiam exatamente. Esquivavam-se, escondiam-se dele e retornavam com roupagens atraentes, parecendo novinhas em folha e ao seu dispor. Só que vinham mais que rodadas e, pior, consagradas pela presença em textos publicados. E nunca, nunca se faziam acompanhar pelo nome da obra em que haviam aparecido e muito menos de quem as havia garimpado.

Isso criava situações pra lá de constrangedoras. Por exemplo, o roteiro de Cangaceiros e amigos (título provisório). Ele havia imaginado a trama durante o café da manhã, anotou a ideia e correu para a reunião de pauta na TV. Impaciente, interrompeu o condutor da reunião.

– Tive uma ideia boazinha – começou, com falsa modéstia. – É sobre um cangaceiro que tem um grande amigo no bando. Tão querido que Severino – o nome que imaginei pro cangaceiro, mas estou aberto a mudanças – começa a ter fantasias eróticas com ele. Numa luta final com a polícia baiana, o amigo é mortalmente ferido e Severino verifica que se trata de uma moça. Dá pra explorar amizade, homossexualismo, repressão, questões de gênero, tudo isso junto! – concluiu entusiasmado.

– Que tal chamar a história de Grande Sertão: Cangaço? – perguntou Leonel, com um brilho de malícia nos olhos. Ele e Henrique eram estrelas em ascensão, rivais no Departamento de roteiros e, claro, hostilizavam-se o tempo todo.

-É, parece interessante – começou Henrique, sem perceber a armadilha. – Eu havia pensado em Cangaceiros e amigos, mas…

– Henrique – interrompeu Carlos, o chefe dos roteiristas – você já leu Grande Sertão: Veredas?

– Claro que sim! – respondeu o rapaz, entre surpreso e indignado com a pergunta. Afinal, todo amante das letras tem obrigação de conhecer o grande romance de Guimarães Rosa.

– Então pare de encher nosso saco com um pastiche de Grande Sertão!

Henrique achou mais prudente ficar em silêncio até o fim da reunião.

Ao chegar em casa, abriu seu exemplar de Grande Sertão: Veredas. Ao ver a primeira palavra, Nonada, veio-lhe à mente toda a trama do livro.

“Plágio involuntário”, admitiu. “Se isso continuar a acontecer, minha carreira já era.”

Nos dias seguintes, Henrique enviou suas ideias para novos roteiros a amigos de confiança. Eles deviam simplesmente informar se a trama lhes lembrava algum texto que tivessem lido. E as respostas confirmaram seus piores receios. Por exemplo, a história do homem que sai de casa para morar em uma encruzilhada poeirenta remetia ao conto A terceira margem do rio, de Guimarães Rosa, com a poeira no lugar da água; o relato sobre o padre que se envolve com uma paroquiana era uma referência evidente ao poema O padre e a moça, de Carlos Drummond de Andrade, que inspirou o filme do mesmo nome, de Joaquim Pedro de Andrade.

No dia da reunião dos roteiristas, Henrique, tremendo de ansiedade, aguardou sua vez de falar. Tinha uma boa ideia, que, infelizmente, não tivera tempo de checar com os amigos.

– Pen-pensei numa his-história de amor ambientada na serra gaúcha – começou, gaguejando de insegurança. – Lindaura é uma moça bem brasileira, um misto de menina e mulher, de inocência e sensualidade, cujo amor é disputado por dois homens: o vitivinicultor Paolo Rossi e o comerciante Franz Engels. – E já entusiasmado, seus temores descartados – Um italiano e um alemão, de posições sociais diferentes, interagindo com uma brasileirinha! Vai ser genial e …

– Gabriela, cravo e canela na serra gaúcha é demais! – interrompeu Carlos. – Você está despedido!!

Desde aquele dia negro, Henrique divide seu tempo entre enviar currículos para editoras e TVs e sua paixão, a literatura. Na verdade, ele bolou uma trama fantástica, boa demais para permanecer inédita. “É perfeita para uma editora especializada em ficção científica ou contos sobre deuses, feiticeiros e heróis”, pensou. “Se não conseguir uma boa editora brasileira, passo o roteiro para o inglês e envio para os Estados Unidos, lá o mercado para esse gênero é bem mais amplo!”

Com os olhos cerrados e um sorriso nos lábios, lembrou pela enésima vez a trama sobre uma divindade que – imaginem – cria galáxias, sóis e planetas em seis dias, bem como todos os seres vivos, o homem e a mulher, e descansa no sétimo!

“Esse detalhe do cansaço da divindade é um achado”, pensou satisfeitíssimo consigo mesmo. “É o lance para tornar mais verossímil e até mais humano um deus sem pé nem cabeça, em quem nenhuma pessoa sensata acreditaria. Um deus que cria galáxias e fica cansadinho!” – Teve uma nova ideia. – “E o desenvolvimento pode ser ainda mais louco, fazer esse criador de galáxias se enfurecer com os pecadinhos de cada pessoa! Um absurdo evidente, mas pode dar samba!” – E, pela enésima vez, pronunciando-as em voz alta, saboreou as palavras que abriam O deus Verbo (título provisório), lapidadas por ele num momento de genialidade: “No princípio era o Verbo, e o Verbo era deus, e o espírito do Verbo pairava sobre as águas”.

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