Notibras

Rotina é correr, comer, dormir, acordar, morrer…

Comer o conto ou como uma crônica. Na hora de jantar, come qualquer coisa quando chegar em casa. Quando chegar em casa arroz e feijão ou quando chegar em casa só arroz que feijão está caro. E se chegar em casa: calor, banho e cobertas; se chegar em casa com a conta de luz já paga. Quando chegar em casa: amor? Por enquanto o amor será apenas uma pergunta, quase uma promessa, ou um prato que comerá no jantar. Fome, motorista, fome que eu nem vi crescer, quando na noite o ônibus passa de supetão, quem está mais atrasado eu ou a exposição de carnes no açougue? Porque sentado, sinto um frio que percorre os tubos desse ar condicionado e a janela sem passagens, as janelas apenas como um projétil decorativo, se o amor voasse lá fora, ninguém conseguiria tocá-lo, mesmo que no escuro pudessem vê-lo porque é brilhante.

Uma família sobe no ônibus, toma lugar logo nos primeiros bancos, porque mais perto do motorista, a chegada parece que chega mais cedo. Uma música nos fones, uma conversa, amenidades em toda parte, o ônibus segue viagem, uma mensagem de whatsapp, um reels, um tik tok, tik tok, o ônibus para, o ar é desligado, alguém grita, não se entende muito bem o que está acontecendo, será que o ônibus quebrou? Dois fiscais e uma família batem boca lá da frente, agora mais essa! os outros passageiros pedem misericórdia para o motorista (pelo amor de Deus, motorista, me deixa chegar em casa), o que está acontecendo aqui?

É inverno e o frio não veio, mas o sol continua se pondo como antes, a tarde ficando escura mais rápido, o pacote de dados que acaba, a mensagem que não chega, o ônibus que não anda, como a agonia dentro do rebanho que caminha para o abate. Um dos fiscais grita, Eles não querem pagar a passagem, gente , e já estão até com a nota na mão, mas não querem pagar e se recusam a descer do ônibus, já chamamos o coordenador. Mais pedidos por misericórdia, nada do coordenador chegar, a família alega que foi tratada mal por um dos fiscais e só de revolta, não vai pagar… até que um rapaz, anônimo e negro, lá nos fundos se levanta como um Exu muito elegante, vai ao painel, gira a catraca duas vezes, roda-a como uma ciranda, diz que está pago e pede ao motorista para continuar a viagem.

O ônibus é ligado, o coordenador chega no último minuto, a fiscal pede que ele entre só para ver o rosto da família, pai, mãe e filho, então os fiscais e o coordenador saem, já não precisávamos mais deles, se é que em algum momento tivéssemos precisado deles, finalmente o ônibus dá partida, o casal sentado nos primeiros bancos, porque mais perto do motorista, a chegada parece que chega mais rápido, as rajadas frias e mortas do ar condicionado que voltou a circular nas tubulações, todos pareciam suportar o peso do clima que ficou, mas em alguns a fome já era tão grande que não poderiam ouvir outra coisa que não fosse as zoadas nos porões dos próprios estômagos negreiros. Quem é que trabalha e passeia e faz compras no baixo centro? Quem é que anda na Caetés? Quem é que pega ônibus na Tupinambás? Quem é que perde a vida na Praça Rio Branco? Quem é que não se dá na Guaicurus?

Por algum motivo fiquei pensando no que é gentileza urbana e talvez seja não se saber a intenção, mesmo tendo-a, e ajudando a si mesmo, ajuda um pouquinho a todo mundo ou não ajuda, porque a família num ímpeto de dignidade passa uma nota de dez reais, como num Pix analógico de conexão muito antiga e humana, até aos assentos do fundo que parece que demora mais para chegar, e a nota não retornou.

Provavelmente essa mulher, a voz da família o tempo todo, não queria pagar diante do fiscal porque, por algum motivo, encontrou algum desrespeito ao entrar, mas que eventualmente quando o ônibus rompesse, ela pagaria para o motorista, a nota já estava na mão. O outro abriu os caminhos, com uma mísera perda de cinquenta centavos e o imenso lucro de ser um herói diante de nós, no meio de tanta gente de contenda e que não fizeram nada. Contudo, depois de todos esses dias e da aula sobre ECA que tive hoje, me sobra apenas o pensamento naquela criança e concluo que, inclusive a quebra de direitos, está em função da pressa de chegar logo, para jantar logo, para dormir logo, para acordar logo, para morrer logo.

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