Ai que saudades que dá
Rua da Alegria, onde nossos sonhos se realizam
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emQuando criança costumava brincar de andar me equilibrando no meio fio, desaprumado, da minha rua. Fazer uns pedidos do tipo: “se eu conseguir chegar ao fim da rua me mantendo andando no meio fio sem cair vou passar em matemática, mamãe vai me dar dinheiro para eu ir a matinê de domingo ou ganho neste ano um lança perfume da marca “Rodouro” e o Sport vence e é tricampeão. Essas “brincadeiras-pedidos” da infância são coisas muito serias, pois, se assim não fossem não me lembraria delas, passado tanto tempo com tanta clareza, contudo agora, os pedidos não passam de metáforas de um adulto.
A minha rua permanece a mesma. Não mudou nem de nome. Apesar de ser rua modesta possui forte personalidade. Chama-se Rua da Alegria.
Ao contrário da maioria das outras congêneres terminarem em espaçosa campina, “a campina da alegria”. Lugar especial, aonde joguei as peladas, brinquei de quadrado, joguei piões e bola de gude; empinei papagaios. Fiz tudo que uma criança tem o direito de como aprender brincado a arte de viver. Pois, é brincando é que se vai aprendendo a se conviver e sobreviver.
Deixando as crianças executivas de hoje e voltando a rua da Alegria.
As suas casas eram e continuam sendo conjugadas, numa solidariedade arquitetônica, para que assim ajuntadas enfrentar em conjunto as intempéries das violências aportadas pela tal de modernidade. Casas simples, de porta e janela.
Dentro delas, existe o comprido corredor, parecendo mais um longo rio e que em vez de desaguar no mar tem como estuário a grande sala de “jantar”.
Recebe no seu curso, tal qual caudaloso curso de água, os afluentes das portas das entradas dos dormitórios. Dormitórios esses, superpovoado de camas, de redes, de guarda-roupas e de cadeiras. Não permitindo a falta de lugar a quem chegasse de surpresa, local para pernoitar, ou mesmo de se hospedar.
Bastava a rede e o gancho na parede e estava garantida a dormida. Em casa de pobre existe sempre lugar para mais uma pessoa…
Lembro-me, quando eu ia dormir, antes de conciliar no sono, de ficar olhando o telhado de telhas vãs do meu quarto, os caibros cheios de fuligem por onde se filtravam réstia de luar ou os respingos de água nas noites de chuva.
A sala de visitas, por ser a dependência mais nobre da casa era forrada com madeira ou estucada. Seu piso de mosaico, enquanto as demais dependências eram descobertas (sem forro) e o piso de cimento.
A sala de janta, dublê de sala de estar era o cômodo onde se situava o rádio — receptor de ondas largas, médias e curtas de marca Phillips holandês e protegido contra a poeira por providencial capa branca de pano, de confecção caseira feita por minha mãe e bordada em ponto cruz o nome RADIO. Além do grande aparelho receptor, imperava a grande mesa de refeições, em torno da qual se perfilavam as cadeiras de assento de palhinha de marca Gerdau…
Acompanhando a mobília da sala de jantar, vinha a cristaleira (‘vitrine’ dos copos, das louças dos talheres e pratarias), riqueza doméstica das donas de casa de classe média.
Depois da sala de refeições é que vinha a cozinha com o seu enorme fogão de alvenaria, a pia de lavar louça, com a caixa de gordura logo abaixo dela. A petisqueira também da cozinha, muito importante esta peça e destinada a guardar os copos e talheres, e outros apetrechos do trivial ou da diária. Precedendo a tudo na cozinha e quase adentrando-se quase na sala de jantar bem à mostra das pessoas, um tripé e ferro galvanizado pintado de prata e com ganchos de pendurar as panelas e que até hoje, não sei o porquê, é denominada militarmente de “bateria de cozinha”. As panelas de um brilhosidade “alumínica”, conseguidas através de saponáceos em barra, bucha de esfregar, palha de aço e muita força das empregadas e das senhoras nossas mães, senhoras de prendas domésticas. Quanto mais essas panelas reluzissem maior se tornava o orgulho da dona de casa — “a rainha do lar”.
O banheiro único, junto da cozinha tinha uma bacia sanitária, descarga dessas de caixa no alto da parede, acionada por uma corrente e que levava um tempão para reencher após a descarga. Fazendo o usuário descarregador de aguardar, por razoável espaço temporal a próxima descarga caso permanecesse algum resíduo de sua obra na latrina.
Um pequeno espaço azulejado, destinado ao banho de chuveiro, ficava também, uma pequena reentrância na alvenaria destinado à saboneteira e a bucha de milho, para limpar e esfregar melhor a nossa sujeira de brincantes de rua. E, por último, a mais modesta das dependências de toda a habitação, o quarto de empregada, este já no quintal, a cama de lona (cama de vento) e um depósito de caixote para a serviçal, colocar ou guardar, seus parcos pertences. No quintal a lavanderia ou tanque de alvenaria, as bacias de quarar as roupas com pedrinhas de anil e, os varais de estendedouros de secar as roupas, ao sol.
Poucas eram as residências que tinham mais de que duas pias. Uma, na cozinha e outra junto à porta de saída do banheiro.
As instalações hidráulicas e elétricas eram expostas, bem como, seus respectivos relógios de registro de consumo da água do Saneamento e no alto da parede de entrada a caixa da luz elétrica. Saudando de cara os visitantes e moradores. As instalações externas eram ótimas de se consertar, mas horríveis de se ver.
As casas melhores já as tinham embutida, forro estucado e chão de mosaico menos, no quarto da empregada. Algumas casas ostentavam em uma das vidraças da janela externa cartazes de cartolina, escritos cuidadosamente a mão, com os dizeres: Cobrem-se botões. Caseia-se, “point à jour”. Datilografia — Ensina-se, Corte e Costura, Confeitam-se Bolos. Fornecem-se Marmitas, etc. Anúncios precursores da emancipação financeira da mulher.
Telefone na rua da Alegria só quem possuía era o comissário de polícia – detentor do poder, para deter e também, o monopólio das comunicações.
A pavimentação da rua da Alegria, feita de pedras irregulares, por melhor que fossem assentes deixavam ficar um afastamento entre elas que permitia espaço suficiente para a grama brotar entre os paralelepípedos. Proporcionando assim, aos funcionários da prefeitura um trabalho vitalício. Assim, quando os zelosos servidores públicos chegam ao fim da rua na sua faina de “arrancador” de gramíneas elas ressurgiam no início do leito da pavimentação. Era um trabalho de nunca acabar. Vitalício mesmo e de lotação irremovível, pois cada rua possuía a sua turma de arranca grama de funcionários, estáveis.
O trecho da calçada de frente das portas das casas não eras esburacado, pois, como era nele aonde se dispunha cadeiras de balanço para as conversas noturnas entre os vizinhos. Os inquilinos tinham grande zelo em cimentar a sua calçada da frente até, por conta própria, pois se fossem esperar a prefeitura estávamos todos perdidos.
Da população de transeuntes havia os cativos, destacando-se: o carteiro, o colhedor do lixo, o acendedor e apagador dos lampiões públicos. Além de não poder deixar de mencionar os pertencentes a denominada atualmente de “economia informal” como, os vendedores ambulantes, o homem do miúdo, o vendedor de galinhas, o amolador de tesouras, o homem do algodão-doce, o vendedor do doce japonês, o comprador de jornal velho Além do velho funileiro e do vendedor de picolé. Era muita gente a transitar nessa minha — Rua da Alegria.
E, após às 22 horas, findo o papo de calçada, as cadeiras recolhidas, as portas trancadas a rua ficava vazia. Entregue ao guarda civil e ao som do seu apito. Segurança desnecessária e barulhenta.
Os ladrões costumavam entrar nas casas “de família” pelos fundos, para roubar galinha ou alguma peça de roupa esquecida no varal. De assalto a classe-média, pelo menos, naquele tempo estava imune.
Para a Campina da Alegria abriam-se as portas dos fundos das casas cujas frentes davam para a rua da Glória. Casas essas, consideradas pela garotada da turma da Rua da Alegria muito mal-educadas desde que faziam da nossa querida Campina o seu lixão. E que nós em represália tínhamos nas suas vidraças os alvos preferidos dos nossos certeiros bodoques ou estilingues. Tiro ao alvo de minha infância!
E, quando obrigado fomos (eu e minha família) a nos mudar, despejados pelo proprietário ao pedir a casa, nosso lar por tantos anos, alegando necessitar da casa para morar (de mentira); sendo rico e por isto possuidor de uma boa assistência jurídica, fomos postos para despejados apesar do meu pai pagar o aluguel religiosamente e de todas as leis do inquilinato.
Após o despejo, eu nunca mais consegui morar em canto, algum desse Mundo. Tornei-me assim, definitivamente um errante e, nunca mais; nunca mais mesmo, consegui ter um endereço de verdade em minha vida.
Considero a Rua da Alegria como uma amiga. Cada amigo ou amiga com as suas diferenças, ocupa um lugar determinado e sagrado no coração da gente e, se acontece de perdermos por qualquer motivo um deles, o dono eterno daquele lugar, não podemos, substitui-lo. Fica sim, o vazio e a cicatriz daquilo que são insubstituíveis.
Morei em muitas ruas nas minhas andanças. Umas mais pobres, outras mais ricas e outras até mais importante, seja no Rio de Janeiro, em Londres, em Oxford, em Chicago, em Nova Iorque e até na Av. Boa Viagem, quando esta última era o endereço mais chique do Recife, antes de inventarem o Recife Folia.
Mas, o meu lugar continua mesmo sendo a minha Rua da Alegria, pois foi ali que me criei, sobretudo aprendi a sonhar.
E, de que vale a vida sem sonhos?
*Médico psicoterapeuta, recifense (da Rua da Alegria), cidadão do mundo