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Ruralistas agora ‘compram’ mídia e vendem gato por lebre

Você certamente viu as imagens emocionantes. Neste momento, em Brasília, milhares de indígenas de 170 etnias estão em vigília esperando a votação do Supremo Tribunal Federal que decidirá sobre o futuro de suas terras. Em jogo está a tese do “marco temporal”, que determina que etnias só podem reivindicar demarcação das terras em que já estivessem fisicamente na data da promulgação da Constituição de 1988.

Povos originários se opõem à tese por uma razão óbvia. Perseguidas, massacradas e expulsas, muitas etnias não estavam em seus territórios originais em 1988 porque foram arrancadas deles. Outra foram arrancadas inclusive depois, por grileiros e garimpeiros. Que sentido faz o marco temporal diante disso? Todo, mas só para os grileiros, garimpeiros e ruralistas.

Os ruralistas, com um forte apoio dos deputados e senadores da Frente Parlamentar de Agricultura, defendem que, se o STF derrubar a tese pré-88, haverá um caos nas demarcações e eles perderão milhões e milhões de hectares de suas terras para os povos indígenas. Jair Bolsonaro concordou: disse que, caso o marco temporal seja rejeitado, o agronegócio ‘pode acabar’ e o Brasil pode ter que importar alimentos. Para o presidente, é uma “política que vem de fora para inviabilizar o agronegócio”.

O mesmo discurso de caos e medo foi replicado com destaque nas páginas do Estadão. “Julgamento do STF pode afetar propriedades de todo o Brasil”, estampou a manchete em uma página dupla no primeiro caderno da edição de domingo, 22.

Nas páginas, infográficos mostravam os “milhões de hectares” que estavam em risco. Outro texto afirmava que as novas demarcações teriam impacto negativo de R$ 1,95 bilhão só no Mato Grosso e uma entrevista de Aldo Rebelo levava o leitor para uma suposta motivação oculta por trás do julgamento. “Demarcações de novas áreas atendem a interesses de ONGs e associados”, diz a manchete. Na entrevista, Rebelo chega a sugerir que a rejeição ao marco temporal poderia fazer com que “qualquer descendente do Cacique Tibiriçá e da Índia Bartira” reivindicassem a demarcação da área da cidade de São Paulo “sob muitos pretextos”.

Embora diagramada como uma página de jornal, a página dupla trazia o selo “Estadão Blue Studio” – o que significa que é um publieditorial, ou seja, publicidade disfarçada de jornalismo. Os preços dos anúncios do Estadão Blue Studio não são públicos, mas dá para ter uma ideia do valor gasto: uma página inteira no primeiro caderno do Estadão, segundo a tabela de 2021, custa R$ 630 mil. Multiplique isso por dois. Some o valor da publicidade customizada. Como os artigos – ou melhor, propagandas – também estão disponíveis na internet, esse valor pode ultrapassar facilmente R$ 1 milhão.

Quem assinou o anúncio foi a Agrosaber, uma plataforma que afirma ter sido criada para “desmistificar fake news ligadas à produção e consumo de alimentos” com base em ciência. Mas não é uma agência de checagem qualquer: foi uma campanha bancada por associações de produtores de algodão, soja e agrotóxicos para defender os interesses do agronegócio nos debates sobre o PL do Veneno, reivindicação antiga da bancada ruralista para flexibilizar a venda de defensivos agrícolas.

Uma reportagem do De Olho Nos Ruralistas já mostrou que quem financia a Agrosaber são as mesmas associações que bancam a Frente Parlamentar de Agropecuária. São entidades de produtores como a Abrapa, de algodão, Aprosoja, de soja, e Abrass, de sementes. Elas custeiam o Instituto Pensar Agro, uma instituição discreta que presta suporte técnico – e envia recursos – à FPA. Quase todas essas entidades são ligadas a grandes empresas, inclusive multinacionais: Bayer, Basf, BRF, JBS, Bunge, Syngenta e Cargill estão na lista.

Por trás da Agrosaber, segundo seu site, ainda há a Companhia das Cooperativas Agrícolas do Brasil, que se autointitula “a maior companhia de registro de defensivos agrícolas genéricos do país”. Mas nada disso está claro no anúncio do Estadão: tudo o que aparece são as mensagens alarmistas e o inofensivo logotipo da Agrosaber. As mensagens alarmistas, aliás, levam a um raciocínio falso. O Instituto Socioambiental põe as coisas no devido lugar: “Mais de 98% da extensão das terras indígenas fica na Amazônia Legal, muitas vezes em locais remotos e sem aptidão para a agropecuária extensiva. E apenas 0,6% do resto do Brasil é ocupado por indígenas. A principal demanda por demarcações está fora da região amazônica.”

Já mostramos no Intercept como, às vésperas de um outro julgamento no STF sobre quebra de patentes, lobistas também usaram a mídia para convencer os leitores a tomarem partido em propagandas disfarçadas de jornalismo.

O mecanismo foi parecido. São intermediários – associações, institutos e escritórios de advocacia – assinando as propagandas. Assim, disfarçam suas ligações diretas com as indústrias interessadas nos resultados do julgamento. A linguagem também é semelhante: o medo. As milionárias manchetes alarmistas, em posição de destaque em um jornal de credibilidade, ajudam a movimentar a opinião pública. É ameaça à economia, é o fim da inovação, são as propriedades em risco.

Na época do julgamento de patentes, o ministro Dias Toffoli se manifestou de forma dura contra os anúncios disfarçados de jornalismo. “Se isso vira moda, daqui a pouco vão colocar ataques a decisões no jornal, no rádio, na televisão. Isso é deslealdade com outros advogados e outras partes, pois manifestações têm que ocorrer nos autos”, ele afirmou. “É má-fé processual, é deslealdade processual”.

Parece que não adiantou, virou moda. Até agora, nenhum ministro se manifestou sobre os anúncios pró-agronegócio. O julgamento só deve ser retomado no dia 1º de setembro. Enquanto isso, indígenas seguem em Brasília, esperando. Vamos ver que anúncios-surpresa nos trarão os jornais neste domingo.

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