Julio Hungria, o jornalista, é o ser humano que passou mais perto. Era difícil mesmo chegar a uma conclusão sobre aquele negócio de tocar rock com tanta força nos violões, aquele jeito de fazer música urbana olhando para o interior do País e música de festa olhando para o interior dos homens. Hungria não se contentou com o que havia até ali: rock rural, folk rock brasileiro, rock sertanejo. Foi mais ousado e fez Sá, Rodrix e Guarabyra se sentirem, enfim, representados: caipiras progressivos.
Não deixava de ser uma forma de etiquetá-los num tempo, 1972, 1973, em que etiquetas diziam muito. A confusão era justificável. Luiz Carlos Sá, carioca, estudado nas jurisprudências do Direito, falante do inglês, era urbano e antenado. Guttemberg Guarabyra, a raiz, ainda andava assustado com a indiferença do paulistano comparada aos sorrisos fáceis do Vale do Rio São Francisco, na Bahia, e preferia Feche os Olhos à original dos Beatles, All My Loving. J
osé Rodrigues Trindade, o Zé Rodrix, misturava tudo o que lhe caía na centrífuga de matriz acadêmica. Um virtuoso na composição e poliglota de sete línguas: piano, violão, acordeão, flauta, bateria, saxofone e trompete. Quando juntou tudo, lá por 1971, quem ouviu teve certeza de que o sertão, logo logo, viraria mar.
O trio lançou dois discos, Passado, Presente & Futuro, de 1972, e Terra, de 1973. Aí, o mar também virou sertão e Zé, indisposto com os amigos, se mandou para a publicidade com o compositor mineiro Tavito. O que vem depois, desde os baixos, como o pouco entendido álbum Cadernos de Viagem, de 1975, aos altos clarins anunciando o cataclísmico folhetim Roque Santeiro, de 1985, prolongando-se pelos menos midiáticos anos 90 e 2000, é história que não esgotaria naquelas biografias de um volume só. Então, eles a cantam.
Sá e Guarabyra, saudosos de Zé Rodrix desde sua morte, em 2009, lançam um disco de memórias afetivas. O último com inéditas veio em 2011, Amanhã, gravado ainda com Zé, que não ficou para ver o resultado. É a primeira vez desde então que a dupla volta a um estúdio, ainda que sem material inédito, para gravar. Um songbook de compilações saiu em 2015 e, em 2017, um projeto ao vivo e em CD e DVD foi feito com Flávio Venturini e o grupo 14 Bis.
Cinamomo, a música de 1977 retirada da ressurreição artística Pirão de Peixe com Pimenta (Sobradinho e Espanhola também são dele), faz a terraplenagem acústica em uma obra que atravessa vários conceitos de época. A equipe do estúdio Mosh conseguiu dar linearidade a músicas de tratamento original muitas vezes limitado pelos recursos do passado. Se Viajante é de 1972, com toda a sombra de Crosby, Stills and Nash que os anos pediam, Harmonia é de 1986, feita na nuvem de teclados e ecos na bateria que valiam de ingresso às FMs.
Com os violões de aço no front, os solos de guitarra de Fábio Santini, uma bateria de pegada seca e brilhante de Christiano Rocha, o baixo e os vocais de Pedrão Baldanza e as teclas de Constant Papineanu, com as vozes em plena forma se cruzando e as percussões nos lugares certos, tudo parece ter sido gravado para um mesmo álbum. “Desde os primeiros discos, nunca nos escravizamos, tivemos algo de Beatles”, diz Guarabyra. Em meio a Sobradinho, Caçador de Mim, Dona, Espanhola, Jesus Numa Moto e Mestre Jonas, onde está Roque Santeiro? Sá explica: “Não conseguimos. Ela é muito forte. Não conseguimos fazer um novo arranjo”.
Histórias – Sem elas, não há uma boa canção. Então, Cinamomo, o álbum de revisitações que Sá & Guarabyra acabam de lançar pelo selo Discobertas, do produtor Marcelo Fróes, poderia vir com um livreto, faixa bônus ou qualquer artifício digital que trouxesse Sá ou Guarabyra contando os bastidores de suas canções.
Dona – A real, uma paixão de Guarabyra que se tornaria uma das maiores vitórias fonográficas da dupla, feita para concorrer no festival MPB Shell de 1982, existe e está viva, ainda que de forma reclusa, em São Paulo. Guarabyra amava aquela mulher, tanto que sonhou quase tudo o que se ouviria como trilha sonora de Viúva Porcina, personagem de Regina Duarte na novela Roque Santeiro.
Depois de um show em Goiânia, os amigos voltaram exaustos para o hotel. Guarabyra logo dormiu e sonhou com Marisa, a musa, sentada nas primeiras cadeiras da plateia enquanto ele tocava. “Eu olhava para o braço do violão e via até os acordes que estava fazendo.” Além das notas do violão e da melodia, ele se lembraria também de frases como “tã, tã, tã, batem na porta”, que no liquidificador do cérebro em modo desacordado haviam sido contrabandeadas de memórias da infância, quando ele ouvia a mesma frase nos sambas de caboclo de sua cidade. Outras passagens descreviam o perfil da namorada, como “Dona, desses animais…”
Marisa ainda é, e já era na época, uma veterinária. “Acordei, peguei o violão e chequei. Os acordes eram exatamente os mesmos.”
Guarabyra foi atrás do amigo assim que acordou, mas Sá não atendia à porta do apartamento no andar de cima. Angustiado para contar de sua Yesterday (a canção clássica que Paul fez toda em sonho), bateu no teto com o cabo de um rodo até acordá-lo. Lá estava um dos maiores ganha-pão de Sá e Guarabyra, entregue de presente por um sonho e ungindo por uma paixão. E Marisa? “Somos amigos, até hoje.”
Espanhola, de 1976, era outra amada à distância de Guarabyra. A parceria com Flávio Venturini se deu em uma noite no Brooklin, em São Paulo, quando fazia zero grau e o baiano resolveu se refugiar na casa do vizinho. “Ele puxou um violão de 12 cordas e mostrou uma melodia linda. Peguei o caderno e escrevi de uma vez só, sem alterar nenhuma palavra.”
Um ano depois, em 1977, quando já andavam em dois, Sá e Guarabyra faziam um percurso de carro pelo sertão do Vale do São Francisco em direção à cidade de Guarabyra, Solar de Bom Jesus da Lapa, onde seu pai vivia, um advogado e pastor batista. Caminhavam pelas ruas quando ouviram uma prosa estranha dita por mais de duas pessoas. Caminhões gigantes, como nunca vistos por ali, andavam levantando as terras de uma região vizinha. Seguiram para lá e viram o que jamais imaginavam. Não só os caminhões mas também muitos homens trabalhavam para construir a represa gigante de Sobradinho, um lago 600 vezes maior do que a Baía de Guanabara, no Rio de Janeiro, construído com águas represadas do São Francisco para fazer funcionar a usina hidrelétrica de Sobradinho. Ninguém sabia disso naquela tarde em que Sá e Guarabyra tiveram a visão do sertão virando mar. Sob regime ditatorial, os jornais nada noticiavam e o projeto era tocado às escuras.
Seis cidades seriam inundadas, centenas de famílias seriam removidas e o impacto ambiental se anunciava. As cobranças previstas e as inimagináveis logo chegariam, como o aumento nos índices de prostituição infantil. Sá & Guarabyra fizeram a primeira reportagem denunciando em música o que o mundo saberia em breve. “Adeus, Remanso, Casa Nova, Sento-Sé / Adeus, Pilão Arcado, vem o rio te engolir / Debaixo de água lá se vai a vida inteira / Por cima da cachoeira o gaiola vai, vai subir / Vai ter barragem no salto do Sobradinho / e o povo vai-se embora com medo de se afogar / O sertão vai virar mar / Dá no coração / o medo que algum dia o mar também vire sertão…” “Foi a partir do sucesso da música que o governo começou a fazer propagandas para reverter a imagem e dizer que a iniciativa faria bem ao País”, lembra o jornalista Guarabyra.