1.
O cara entrou no consultório e foi desabafando.
“Sonho quase todos os dias com o hotel. O hotel de meus pais, lá de minha infância. Sonhos de labirintos. Vivo e moro em hotéis; eu sou aquele hotel; ou melhor, doutora, sinto que tenho uma relação visceral com ele. Esses sonhos me fazem mais intenso, pessoa melhor. Esses sonhos me revelam claramente isso. Porém, neles, a imagem do hotel nunca está limpa, no foco. A frente do prédio é distorcida e o interior jamais está com a luz que eu gostaria para filmar. Nos sonhos, o hotel parece uma tripa estendida, sem fim. Ao final dos sonhos fico sempre com a impressão que ele me vem como uma lembrança distante, lá dos confins do universo. Tenho a certeza que faço parte dali, daquele lance, mas não consigo nunca encontrar as chaves, os códigos. Penso ouvir alguém chorando e dizendo que é por mim. Nos sonhos, fico tenso e jamais entendo tanta consideração. Corto os pulsos ao pensar que essas lágrimas são por minha causa. O hotel, sem dúvidas, envolve e dá sentido à vida que eu –por determinação ou destino segui- e é parte de meu ser. Ele me possui e eu a ele; sou parte dele, como os quartos, a cozinha, o salão de café e refeições, a entrada, a portaria. E a cidade também, cidade da qual nem me lembro o nome, mas sei que existiu e está lá. E assim eu sonho e sonho e sonho. Acordo atordoado e me pergunto: ” Onde estou? Em que hotel? Em que lugar?”. A pergunta é besta, pois sei que estou em algum lugar fazendo mais uma reportagem com minha equipe e o lugar, qualquer que seja, será sempre UM lugar. Choro. Tomo banho e depois um ótimo café. E sigo para o trabalho. Esta pergunta “Onde estou?”, não faz sentido algum. Estou aqui e agora. Pronto, nada mais. Entro no carro de reportagens e ouço o Walter, motorista, perguntar: “Pronto velho? Vamos… Mais um dia!”. Respondo com o dedo positivo e seguimos pela estrada cheia de curvas e barrancos próximos. Estamos a quase dois mil e setecentos metros de altitude e o frio é intenso. Fixo os olhos nas faixas da estrada e posso ainda ouvir o choro de alguém bem baixinho lá longe, na memória. Alguém que ainda chora por mim. Sinto o vento frio no rosto e acho que “nasci com o fiantã pra Lua”, – como diria minha mãe-, pois alguém ainda chora por mim e continuo “na estrada”… chora por mim, mesmo que baixinho e quase imperceptível”.
2.
– Alô, pai? Você está aí?
– Oi, fala filha!
– Tô precisando de uma “força”!
– Tá, o que está acontecendo?
– Pai? Pai?
A ligação caiu e vinha de um orelhão.
Por dias, fiquei procurando conexões e formas de chegar até a filha.
Cheguei.
3.
Por anos, vivi sem notícias.
A última que tive foi que a garota havia vendido tudo onde morava, se apaixonara por um cantor “de estrada” e seguia rumo à Patagônia. Ganhar a vida nas praças, nos bares e sonhar o sonho de viver livre. Olhei para o espelho na sala do hotel e disse ao cara -que não era mais eu- da minha confusão, “Não dá para entender nada mais, nada menos'”.
Naquela noite sonhou novamente.
O hotel-tripa lhe vinha em imagens como códigos de entradas e saídas para alguma conexão? Nada.
Novas imagens e nada.
Observou apenas pequenos apartamentos ao longo da imensa praia suja, gente porca e nojenta, que não sabe andar nem na areia e nem em calçadas. Vivia ali há um ano; num lugar onde ninguém sabe o que é o outro. Sabem o que é “o si próprio”. Gente pepinos em conserva esperando a morte. Suou de pavor ao perceber que o seu sonho era pesadelo. Acordou e beijou a companheira amada, que de pronto lhe acolheu:
– O que foi, bem?
– Sonho pesado.
– Calma, é apenas sonho.
– Sim, mas está acontecendo!
– Vamos lá, deixe acontecer. Ainda é madrugada.
4.
Caramba, caiu ligação!- gritou a mulher.
Depois de alguns segundos, na noite fria do sul, ela pensou em cortar os pulsos, jogar-se no rio imenso que risca a cidade, mas ponderou a existência, o filho caçula, e voltou para casa. Casa que não era dela. Apenas mais um lugar de passagem.
Na manhã seguinte decidiu fazer cabelos de rastafári em si mesma.
No salão, o cantor entrou decidido a resolver a questão:
– O teu carro! O teu carro o cara! Você já encheu o meu saco!
O que se viu depois foram cenas de amor-desamor-rancor-violência.
– Alô, Pai? Pai…
– Sim, filha!…Ok! Venha para cá, fique com a gente.
Naquela tarde, o cara – como eu já lhe disse, doutora, não era mais eu!- chegou ao metrô da Estação Tietê em Sampa…era São Paulo…Sampa…com o coração aos pulos. A fiel companheira contara os cobres para as passagens de ônibus. Foi assim…horas de escárnio, malas imensas arrastadas e corridas para pegar o menino (filho da mulher, de apenas três anos, e neto do cara), no metrô.
Desceram a serra pela Emigrantes e chegaram, enfim, naquele balneário de aposentados na Baixada Santista. Só felicidade. Só que não. Chegaram e partiram no primeiro Zepellin que passaria poucos dias depois por ali. Nada tão triste que não possa piorar.
5.
Doutora, a senhora deve estar me perguntando, “Onde entram na história os Sapatinhos de Toc Toc?” Simples, doutora, uma questão apenas de tempo.
Estão lá atrás, na origem, no começo de tudo.
Noite quente na ilha, Floripa, SC.
O cara sonhou uns lances estranhos, como sempre.
Moravam num grande hotel, com sótão, chão de tacos de madeira. E ele ouvindo…..Toc-Toc…..Toc-Toc….e uma menina de três anos, com os sapatos da mãe, teimava em descer as escadas do segundo andar para o térreo e cantando:
“Eu não sei dizer nada por dizer então você FALA!”.
Acordei –não!-, o cara acordou suando frio e gritou para a companheira:
– Ela está aqui?
– Está, sim, graças a Deus. Chegou bem!
Na mesma noite, o pai falou para a companheira, “Mas não temos uma filha/menina!”.
No que a companheira respondeu convicta, “Não, mas nossos filhos terão, com certeza! E ela andará com os sapatinhos de Toc-Toc…”.
6.
Pois tudo é mesmo assim, doutora:
“[…] estórias que se chegam e que se somem sem mais nem fumaça; se irão e que se voltam, que se ficam e depois se desaparecem ou que se acomodam em algum lugar. No mais, me contaram essa novelinha e eu não poderia perder o prazer de contá-la (mesmo que do meu jeito) pra doutora. Pode ser verdade ou mentira, não importa. O que importa é que existiu. Existe! Ficará apenas o barulhinho dos sapatinhos de Toc-Toc […] Doutora!!!: Em que hotel estou?”
7.
Naquela manhã, o céu amanheceu cinza feito olho de peixe morto.
O Zepellin nunca mais passou para salvá-lo, mas o homem seguiu esperançoso pelas estradas, feito um ovo chocado fora do tempo. Feito pássaros amassados pelo vento Sul da madrugada.