Daniel era um cara legal, amigo dos amigos, amigo das ex-mulheres, sempre gentil com as atuais e/ou futuras parceiras. Só tinha um defeito: falava demais. A verborragia aumentava quando se sentia apaixonado, o que acontecia com enorme frequência e estava acontecendo na ocasião.
Nessas ocasiões, Daniel estufava o peito e mandava ver. Às vezes, leve e feliz, contava histórias maliciosas, falando mais palavrões que papagaio de bordel, tendo como pano de fundo as risadas da moçada. Não raro, porém, sua veia lírica latejava e ele passava horas recitando sonetos – de Camões, Shakespeare, Vinicius de Moraes e outros menos votados. Ora, poesia em mesa de bar ou é de sacanagem ou é de Augusto dos Anjos, quando todo mundo já está bêbado. A essa altura, “Escarra nessa boca que te beija!” soa como o mais delicado verso jamais escrito.
Se os amigos morriam de rir com as baixarias, morriam de tédio quando Daniel incorporava o poeta. Nessa ocasião, o jeito era elogiar os poemas, a sensibilidade do recitador – e sair de fininho para encher os chifres de cachaça na santa paz de outro boteco. Com Mariana, a Eterna Amada do momento, era pior ainda. Com ela, Daniel silenciava sem dó o papagaio bordelesco e só recebia os sonetistas. A coitada não aguentava mais, e um dia explodiu:
– Melhor dar um tempo, Dani. Gosto de você, adoro transar com você, mas, quer saber, detesto sonetos! Talvez a gente se esbarre algum dia, mas por ora não dá!
Por um momento – milagre! – Daniel ficou sem palavras. Saiu do apartamento de Mariana aos tropeções, sem ver coisa alguma. Quando se acalmou um pouco, começou a ligar para os amigos, “Mariana terminou comigo”, dizia a cada um. “Preciso da companhia de vocês para tomar um porre”.
Mas todos tiraram o corpo fora. Se Daniel amando era dose, com dor de corno era insuportável. Arranjaram mil desculpas esfarrapadas e deixaram o pobre infeliz sozinho.
– Danem-se! – berrou o seduzido e abandonado. – Tenho mil poetas como companhia. E muita birita para recepcioná-los.
E foi assim que, rodeado de garrafas de vodca e uísque (seus venenos prediletos) e muitos livros de poesia, Daniel entregou-se a seu sarau solitário. Depois de enxugar uma lágrima solitária, virou o primeiro copo de vodca e abriu aleatoriamente um dos livros selecionados.
Fora uma escolha judiciosa. Da literatura em espanhol, ele reunira sonetos de Quevedo, Garcia Lorca e Pablo Neruda; da Inglaterra, os sonetos de Shakespeare; das letras portuguesas, compareceram Camões, Gregório de Matos, Bocage, Antero de Quental, Vinicius de Moraes e, last but not least, Augusto dos Anjos; a cada poema recitado em voz alta, Daniel tomava uma generosa dose de vodca ou uísque. Em pouco tempo, estava chorando – pelo amor perdido e pelo porre revisitado.
Em suas tristes circunstâncias, Daniel nem percebeu que os versos recitados escorriam de seus lábios e começaram a acumular-se no chão do apartamento. Quando notou, eles já pressionavam seu coraçãozinho ferido. Mas nem ligou.
– Morrerei em nome do amor e da poesia! – proclamou enrolando a língua, bêbado de dar gosto.
Suas vias respiratórias foram cobertas pelos sonetos de Augusto dos Anjos. Mas ele continuou a declamá-los até o fim; suas derradeiras palavras foram a última estrofe do poema Versos íntimos: “Se a alguém causa inda pena a tua chaga/Apedreja essa mão vil que te afaga/Escarra nessa boca que te beija!”