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Senhor Calcanhar

Se Aquiles fosse como Sócrates, a história seria outra

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Autor/Imagem:
Eduardo Martínez - Foto Reprodução/CBF

Era uma mania nos anos finais de 1970 nas peladas. Todos queriam dar de calcanhar, mesmo que o companheiro de pelada estivesse a um metro de distância. No início era algo meio complicado de se fazer, mesmo para os mais habilidosos. O calcanhar é seco e, quando a bola era chutada, ou melhor, calcaneada (se o Guimarães Rosa podia…), muitas vezes espirrava. Mas ninguém reclamava, pois era uma febre recente, e todos pareciam doentes.

Sócrates! Doutor Sócrates! Doutor! Magrão! Alto que nem um varapau, lembrava mais um jogador de basquete. Driblava muito bem, cabeceava muito bem, chutava muito bem. Tudo isso ele fazia muito bem! Mas o calcanhar calcaneava divinamente!

O que era aquilo? Com certeza ele não havia inventado o ato de calcanear, isso qualquer um poderia afirmar sem qualquer sombra de dúvida. Mas esse ato singelo e pouco comum, pelo menos até então, jamais havia sido executado com tamanha maestria. Por isso, não seria qualquer blasfêmia afirmar que foi o Doutor Sócrates o grande divulgador da calcaneada.

Essa jogada não era apenas reproduzida, mesmo que toscamente, nos campinhos de várzea, nos becos das quadras, nos terrenos baldios. Outros craques ou não tão craques assim também tentavam utilizar essa jogada maestral, mas sem a mesma categoria do craque do Corinthians. Seja como for, todos tentavam. Até mesmo os mais tímidos e desconcertados. Ninguém queria ficar de fora.

Fizeram até um programa com o Sócrates, onde ele batia alguns pênaltis de calcanhar. Incrível, ele acertava todos! Gol!!! E isso virou nova mania! Os pênaltis das peladas também passaram a ser batidos assim. Que sorte dos goleiros, pois raramente uma bola rumava certeira.

Pois é, os gols de pênalti se tornaram raros entre os peladeiros. Obviamente, de vez em quando, muito raramente para falar a verdade, um ou outro conseguia fazer com que a bola balançasse a rede, mesmo que esta realmente não existisse na maior parte das metas. Ninguém ligava! Todos precisavam arriscar para, então, contar vantagem depois: “Fiz um gol à la Sócrates!”

Situações hilárias aconteciam com muita frequência. Furadas humilhantes, desequilíbrios ao rodopiar o corpo na ânsia de dar uma calcaneada, frequentes quedas. Ninguém realmente dava a mínima para esses erros grotescos. Não havia um sequer que executava com a classe do Sócrates. Até mesmo o Zico, quando fazia suas calcaneadas, estava longe de fazê-las com a elegância própria do Magrão.

Havia uma dúvida na ocasião sobre quem era melhor: o craque do Flamengo ou o Doutor? Fizeram essa pergunta para o Zico, que não respondeu com exatidão. O Sócrates não titubeou e afirmou, com todas as letras, que o Galinho era o melhor. Ou seja, o Magrão, com a elegância costumeira, deu outra calcaneada nessa pergunta sem muito nexo e disse: “O Zico!”

É como querer discutir quem é mais importante: o arroz ou o feijão? Os dois cracaços eram, sem qualquer sombra de dúvida, fenomenais. No entanto, a evidência naquele momento era mesmo o calcanhar do Magrão. Provavelmente, até mesmo o Zico fazia parte dos que estavam com febre e, portanto, deveria sonhar em fazer um gol de pênalti ou de falta dando uma calcaneada à la Doutor Sócrates.

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