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Se o hábito não faz o monge, Covid fez surgir o escritor

Imagine-se trancado em casa, abrindo a porta com o rosto escondido por uma máscara e recebendo, de outras mãos, estas enluvadas, algo para comer, para beber… Transporte-se para a pandemia de Covid que assolou o mundo. Como você, caro internauta, passava as horas que pareciam longas e demoradas como passo de tartarugas? Teve quem buscasse esse período para trazer para o mundo o que navegava em sua mente: contos, crônicas, poemas, romances…

Foi assim, basicamente, que surgiu o lado literato de Cassiano Silveira. Se o hábito não faz o monge, faz, com certeza, um escritor. Catarinense nascido em Floripa, o entrevistado de hoje dá a seguir uma verdadeira aula de como, quando, onde e por quê escrever.  E mais: indica livros e autores que merecem, sim, ser lidos. Leia a entrevista. Lá no final, se desejar, existe o caminho das pedras para interagir com ele.

Fale um pouco sobre você, seu nome (se quiser, pode falar apenas o artístico), onde nasceu, onde mora, sobre sua trajetória como escritor.

Meu nome é Cassiano Silveira. Sou natural de Florianópolis, apesar de nunca ter residido lá. Cresci no município de São José e hoje resido em Palhoça, sendo todos municípios da região metropolitana da Capital de Santa Catarina. Minha trajetória como escritor é recente, apesar do sonho ser antigo. Comecei a publicar apenas com a chegada da pandemia de COVID 19, em coletâneas. Não sei dizer ao certo, mas creio que fui publicado numas dez obras coletivas, com destaque para duas organizadas pela escritora e amiga Edna Domenica, que citarei à parte mais adiante. Participei de alguns concursos e recebi uma agradável menção honrosa no 1º Concurso Literário SENAI/CIMATEC “A vida numa sociedade tecnológica”, com o conto “A perfeição”. Essa coletânea está disponível gratuitamente na internet, basta digitar “coletânea literatec 2021”. Também tenho dois livros lançados, “Sobre o medo, a morte e a vida” (edição do autor, 2021), onde reuni diversos contos, poemas e uma crônica; outro chamado “Tr3s contos sobre mães famintas e outros textos que devoram” lançado pela editora TAUP (Toma Aí Um Poema) em 2022. Mantenho um perfil no Instagram (@siano_silveira), onde publico alguns escritos, fotos e otras cositas más. Estou também iniciando uma pequena editora, a Tão Livro. Temos já três livros lançados e um no prelo. Por enquanto estou divulgando mais no “boca-a-boca”, mas tem também perfil no Instagram (@taolivroeditora) e site (www.taolivro.com.br).

Como a escrita surgiu na sua vida?

De uma forma mais concreta, posso dizer que surgiu “por força” e ao mesmo tempo “graças” à pandemia (sim, a de Covid) que me tornei um escritor de fato. “Por força” porque, para quem tinha um mínimo de noção da gravidade do momento que estávamos passando, foi um período de pressão psicológica muito intenso e a escrita foi ferramenta importante para que eu pudesse digerir todo aquele pesado conjunto de acontecimentos e aliviar um pouco a tensão. Aliás, foi assim pra muita gente, né? E “graças” porque, não fosse a premente necessidade de escrever, talvez eu nunca tivesse efetivamente me dedicado à tal empreitada. Mas isso não quer dizer que eu tenha começado a escrever do dia pra noite, claro! Na adolescência tive a sorte de conseguir escrever poemas que me ajudavam a exorcizar aqueles fantasmas comuns de tal fase da vida. Escrevi bastante e pretendia reunir num livro, mas na época era algo que parecia bastante distante da minha realidade… Aviso aqui que estou falando de meados dos anos 1990, quando não se tinha facilidades como impressão digital, internet, e-book e outros recursos que hoje tornam a publicação de um livro (físico ou digital) um pouco mais acessível. Depois, essas poesias acabaram se perdendo entre arroubos passionais que não cabe explicar agora. Mais tarde uma série de questões sociais (ou políticas, no sentido mais amplo da palavra) alavancaram, direta ou indiretamente, uma necessidade de escrever, buscando externar minha opinião a respeito de vários retrocessos que eu presenciava, de gaslighting político a terraplanismo, de cartazes pedindo “ditadura já!” a movimentos antivacina… Não dá pra ficar calado diante de certos absurdos, mas como não sou muito de falar, escrever e publicar acabou se tornando minha forma de expressão preferencial. Mas eu não posso deixar aqui de falar nos incentivadores que eu tive ao longo da minha vida, e foram vários. Vou começar pelo meu pai, que certamente foi o primeiro. Ele escreve desde que eu me tenho por gente, principalmente poemas que, via de regra, se tornam músicas. Ele também tem alguns livros publicados, sob o nome de Ney Santos, onde mescla poesia e prosa. Minha sogra também se dedica às artes da escrita desde bem antes de eu conhecê-la e já publicou, se não me falha a memória, dois livros próprios, além de muitas participações em coletâneas. Seu nome de autora é Marlene Nobre e, junto com meu pai, eles me mostraram que o mundo da literatura é algo alcançável. Mas sem dúvida, a minha maior incentivadora foi a escritora Edna Domenica. Conheci-a por intermédio da minha sogra e, no nosso primeiro encontro, recebi dela um livro com uma dedicatória onde estava escrito “ao amigo escritor Cassiano”. Disse a ela: “Edna, não sou escritor…” Ela olhou nos meus olhos e replicou: “Mas será!” Bem, ela acertou e hoje estou aqui respondendo uma entrevista como escritor, pela primeira vez, aliás. Depois disso já fizemos várias empreitadas literárias juntos. Ajudei-a com a produção de duas coletâneas por ela organizadas: “Tudo poderia ser diferente – inclusive o título”, publicada em e-book e “Do corpo ao corpus”, publicada em meio físico, ambas em 2022. A primeira está disponível na Amazon e da segunda ainda restam alguns exemplares com os autores (comigo inclusive). Ainda tive a felicidade de editar seu último livro, “O setênio”, lançado agora em 2024 pela Tão Livro. A Edna me incentiva muito a continuar na produção literária e devo muito a ela!

De onde vem a inspiração para a construção dos seus textos?

Sabe, não sou uma pessoa muito otimista em minha visão de mundo. Tenho recorrentemente uma sensação de estranhamento em relação às coisas, às pessoas… Vejo muitas coisas assustadoras acontecendo ao meu redor, que outras pessoas acham normal… Grande parte da minha inspiração vem desse mundo aterrorizante em que vivemos, tão cheio de violência naturalizada, de agressão cotidiana, de opressão normatizada. Dedico-me principalmente aos contos e, se fosse pra me enquadrar num estilo, acho que seria aquilo que algumas pessoas estão chamando de “novo horror”, um horror que se baseia não em acontecimentos sobrenaturais, monstros, fantasmas ou sanguinolência, mas naqueles aspectos aterrorizantes do nosso dia-a-dia, sabe: uma criança de seis meses de idade hipnotizada por uma tela de celular é apavorante para mim, um dependente químico andando a esmo pela rua também, mas a maioria acha isso totalmente normal… Mas não sou muito afeito a rótulos e tampouco pretendo estar restrito a um só estilo, então, as coisas boas da minha vida também podem ser inspiração. E nesse caso não posso deixar de citar minha esposa e meu filho, que certamente inspiram meus textos mais leves e sentimentais. Eles são os responsáveis, por assim dizer, por boa parte das poesias que eu tenho voltado a escrever nos últimos tempos. E, para meu filho, já escrevi vários textos infantis, todos ainda inéditos. Mesmo que eu seja pessimista quanto a humanidade em termos gerais, ainda tenho olhos para as coisas bonitas e singelas da vida. É importante não as perder de vista!

Como a sua formação ou sua história de vida interferem no seu processo de escrita?

Acho que essa pergunta está respondida nas entrelinhas das respostas anteriores… Mas meus anos na universidade contam muito nesse processo. Tenho formação em História e o convívio com o pessoal de humanas realçou meu pensamento crítico, me apresentou formalmente aos processos históricos. Ter consciência de que, na nossa vida, na nossa sociedade, na nossa história, nada acontece à toa, é essencial para a minha percepção de mundo. Meus textos refletem essa percepção – ou, ao menos, desejo que reflitam. Claro que tem uma série de acontecimentos muito pessoais também envolvidos, mas acho que não conseguiria enumerá-los, mesmo que quisesse.

Quais são os seus livros favoritos?

Tenho muitos. Quase todos eram meus favoritos no momento que eu estava lendo. Eu me empolgo com os mundos que os autores propõem e entro de cabeça! Mas alguns livros são marcantes, claro. Li “Nada de novo no front” e “Amar e morrer”, de Erich M. Remarque, talvez dezenas de vezes. “Admirável mundo novo”, do Huxley; “1984”, do Orwell. “Vidas secas”, do Graciliano Ramos, é incrível, consegue te fazer entrar na mente dos personagens. “O cortiço”, do Aluísio Azevedo. E tem um livro, pouco conhecido, que mexeu com a minha cabeça, se chama “O ciclo do terror” e reúne quatro romances de Francisco de Assis Brasil. Esse livro influenciou muito minha forma de escrever. Também vou incluir no rol de meus livros favoritos aqueles que eu tive o prazer de editar, uma vez que são um pouquinho meus “filhos” também: “Um conto, um ponto, um contraponto”, de Valmir Vilmar de Sousa (Vevê); “Não me atazana, Atanásio!”, de Ney Santos; “O setênio”, de Edna Domenica e “Ninguém escreve por mim”, de organizado pelo também escritor Claudio Carvalho, esse último ainda no prelo, todos pela editora Tão Livro. E ainda o “Do corpo ao corpus”, que citei antes. Adoro esse!

Quais são seus autores favoritos?

São tantos nomes, e tantos livros por ler ainda, que é difícil apontar. Aqueles citados na resposta anterior estão entre eles, claro. Gostaria de incluir o Mário Quintana, dono de uma poesia que sempre consegue me maravilhar. E tem muitos nomes que eu gostaria de registrar aqui, de escritores que não são conhecidos do grande público, mas que possuem inegável talento, os quais eu conheço pessoalmente! Tem a Edna Domenica, com sua pena afiada para o sarcasmo, mas que também é excelente poetisa. A Rosilene Souza, que escreve de uma forma contundente e, muitas vezes, com forte apelo visual. O Antônio Gil Neto, poeta de mão cheia, muito lírico e cheio de nuances. O Gilberto Motta, que faz crônicas muito boas. O Claudio Carvalho, que conheci há pouco tempo, muito sagaz nos seus escritos, principalmente poesias. A amiga Rose Rabelo, muito corajosa na escrita dos seus contos. Meu pai e minha sogra, que referi antes. É muita gente boa escrevendo, poderia listar muitos mais e estou cometendo uma injustiça em não colocar todos os nomes que me vêm à cabeça, mas a lista ficaria muito longa… São todos merecedores! Espero que eles me perdoem…

O que é mais importante no seu processo de escrita? A inspiração ou a concentração? Precisa esperar pela inspiração chegar ou a escrita é um hábito constante?

Acho que não é bem inspiração nem concentração. O negócio pra mim é ter uma boa provocação, algo que me mobilize a escrever. A partir disso, a escrita acontece. Muitas vezes eu também escrevo “de trás pra frente”: imagino um desfecho que, a meu ver, seja impactante. Depois construo uma história que me leve até meu objetivo… Isso é inspiração ou concentração?

Qual é o tema mais presente nos seus escritos? E por que você escolheu esse assunto?

Não creio que minha produção tenha um tema muito nítido, mas com certeza meu assunto recorrente é o ser humano. Eu tento imaginar como minhas personagens vão reagir aos conflitos que encontram. Tento imaginar os desdobramentos de suas pequenas atitudes, como seus vícios e virtudes influenciam suas vidas e daqueles que a cercam. Talvez eu pudesse falar que uso uma temática existencialista, mas tenho medo de ser interpretado de forma muito acadêmica. Também gosto de trabalhar no campo da crítica social. Mas peço que me leiam como um leigo. Não sou um intelectual, apesar de admirar aqueles que o são (ou foram).

Para você, qual é o objetivo da literatura?

O objetivo da Literatura, com “L” maiúsculo, eu não me arrisco a dizer. Mas o objetivo da minha literatura é fazer o leitor “se mexer na cadeira”, forçá-lo a reacomodar seus lugares comuns, seus conceitos. Eu quero incomodar meu leitor! Alceu Valença inicia a música “Agalopado” com o seguinte verso: “Quando eu canto, o seu coração se abala/Pois eu sou porta-voz da incoerência”. Meu sonho é escrever assim, abalando certezas. Quem sabe um dia eu consiga.

Você está trabalhando em algum projeto neste momento?

Vários, bem mais do que deveria, talvez. Está me faltando foco… Tenho três livros de contos em andamento, um projeto bem incipiente de romance e várias histórias infantis na gaveta.

Como é ser escritor hoje em dia?

Sabe, acredito que essa pergunta é mais difícil de responder do que parece. Penso que temos escritores em muitas situações distintas no Brasil: temos desde escritores do mainstream, com uma baita estrutura de divulgação e produção por trás, vendendo livros em grandes redes de livrarias de abrangência nacional, até escritores totalmente independentes, publicando por meios digitais ou em livros físicos artesanais. Há uma variedade enorme de situações e cada escritor vai ter uma resposta diferente para essa pergunta. Para mim, ser escritor é poder registrar, de forma mais ou menos perene, as coisas que vejo, penso e sinto. Hoje eu escrevo mais pelo prazer da criação que por outros motivos.

Qual a sua avalição sobre o Café Literário, a nova editoria do Notibras?

Acho o Café Literário uma iniciativa bem interessante. Ter um espaço de boa visibilidade num portal de internet é um apoio importante na divulgação dos nossos trabalhos. Só posso ver com bons olhos. E agradecer!

Contatos:
Instagram: @siano_silveira; @taolivroeditora
Site: www.taolivro.com.br

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