Em poucas semanas entre março e maio de 2020, ainda no início da pandemia, ganhou ímpeto no mundo inteiro a discussão em torno de medicamentos que, esperava-se, tivessem o poder de “virar o jogo” na batalha contra a covid-19.
A cloroquina e a hidroxicloroquina passaram a ser objeto de uma corrida às farmácias e de pesquisas variadas.
Mas essa empolgação com as duas drogas foi diminuindo à medida que as evidências científicas passaram a apontar que elas não traziam benefícios aos pacientes, além de terem efeitos colaterais graves e darem uma falsa sensação de proteção contra o coronavírus.
Não no Brasil.
Por aqui, o presidente Jair Bolsonaro manteve até este ano a defesa da cloroquina e da hidroxicloroquina como parte do que chamou de “tratamento precoce”, embora em declarações recentes tenha admitido que não existe medicamento “certo” para tratar a covid-19.
Na quinta-feira (20/05), Bolsonaro revelou que voltou a usar cloroquina recentemente após sentir sintomas de covid-19.
“Não vou falar o nome (do remédio) para não cair a live”, disse Bolsonaro durante transmissão na internet. As empresas de tecnologia têm encerrado transmissões que propagam notícias falsas sobre a covid-19, como promover a suposta eficácia da hidroxicloroquina.
“Aquele negócio que o pessoal usa para combater a malária, eu usei lá atrás e no dia seguinte tava bom. E vou dizer mais: há poucos dias estava me sentindo mal e, antes mesmo de procurar o médico… Olha só que exemplo estou dando: tomei depois aquele remédio porque estava com sintoma. Tomei, fiz exame, não estava (doente). Mas, por precaução, tomei.”
Essa não foi a primeira referência à cloroquina que o presidente faz durante essas transmissões ao vivo pelo seu canal do YouTube sem mencionar o nome do medicamento.
Nas outras vezes, Bolsonaro também disse que omitia o nome para que a transmissão não fosse tirada do ar. A promoção de remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19 viola regras do YouTube cuja pena poderia incluir o bloqueio total do canal caso houvesse um grande número de reincidências.
Essas drogas voltaram aos holofotes da CPI da Covid nesta semana, com o depoimento do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello (leia mais abaixo), na quarta e quinta-feira (19 e 20/5), e com o depoimento adiado para terça-feira (25/5) da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, conhecida como “capitã cloroquina” por defender o uso desta na pandemia.
Veja a seguir o histórico de como essas drogas destinadas originalmente para tratar malária, artrite e lúpus ascenderam durante a pandemia e acabaram, no Brasil, incorporadas a discursos e iniciativas governamentais brasileiras que destoam da recomendação de agências internacionais e também de evidências científicas.
1- Trump adere à cloroquina – mas seu governo a abandona
“Muita coisa boa saiu da hidroxicloroquina. Vocês ficariam surpresos com quantas pessoas tomaram (o medicamento), especialmente profissionais da linha de frente, antes que sejam contaminados. Eu mesmo estou tomando. Estou tomando agora mesmo, comecei há algumas semanas”, disse a jornalistas, em 18 de maio de 2020, o então presidente dos EUA, Donald Trump.
Na época, Trump já estava contrariando uma recomendação de seu próprio governo: a FDA, agência americana regulatória de medicamentos, havia advertido contra o uso da cloroquina fora de testes clínicos, depois de surgirem evidências de que o medicamento causaria arritmia cardíaca em pacientes.
E, antes de dizer que tomava hidroxicloroquina, Trump já a elogiava como a droga que poderia “virar o jogo contra o vírus”. Essa defesa começou em março de 2020, quando dois estudos ganharam espaço na imprensa americana e nas postagens de Trump no Twitter.
Um deles é um estudo do instituto francês IHU-Méditerranée Infection, alegando que “a cloroquina e a hidroxicloroquina eram eficientes contra o SARS-CoV-2”.
Diversos cientistas, porém, questionaram a metodologia e as diretrizes éticas do estudo e apontaram conflitos de interesse dos autores.
Mais tarde, o diretor do IHU e um dos autores do estudo, Didier Raoult, foi denunciado pela Sociedade de Patologia Infecciosa de Língua Francesa (SPILF) por “promoção indevida de medicamento”, embora ele ainda mantenha a defesa de seu estudo e do uso da hidroxicloroquina em alguns casos.
“Rapidamente isso (a cloroquina) foi politizado, porque Trump endossou o estudo ao tuitar a respeito. Daí aconteceu que se você fosse republicano, basicamente tinha de ser a favor do estudo e se fosse democrata tinha de ser contra”, disse recentemente à BBC News Brasil a cientista holandesa Elisabeth Bik, uma das primeiras a apontar problemas no estudo francês.
“Virou algo grande: muitas pessoas passaram a defender o estudo. Mas os cientistas estavam em sua maioria vendo que o medicamento não era útil”, disse Bik.
No dia seguinte a Trump tuitar sobre o estudo, em março, a venda da cloroquina e da hidroxicloroquina aumentou 46 vezes em relação a um dia normal nas farmácias americanas, segundo um levantamento do The New York Times.
Simultaneamente, o segundo “estudo” sobre o tema a ganhar holofotes nos EUA é, na verdade, um arquivo de Google Docs que entrou em evidência depois de seu autor, Gregory Rigano, ter dito na emissora Fox News que a hidroxicloroquina era capaz de “eliminar o vírus completamente”.
Segundo o Washington Post, porém, Rigano não é médico ou cientista, e sim advogado.
Ele alegou que seu estudo havia sido elaborado “em consulta com a Escola de Medicina da Universidade Stanford”, o que a universidade negou.
Em 29 de junho, o médico Anthony Fauci, que chefia a força-tarefa americana de combate à pandemia, foi enfático em uma declaração contra a hidroxicloroquina.
“Sabemos que cada um dos bons estudos – e por bom estudo eu me refiro a estudos de controle randomizados nos quais os dados são robustos e confiáveis – mostrou que a hidroxicloroquina não é eficaz no tratamento da covid-19”, disse Fauci.
No outro lado do Atlântico, países europeus haviam começado, em maio de 2020, a determinar a suspensão do uso do medicamento em seus protocolos de tratamento contra a covid-19.
2 – Bolsonaro inicia promoção do remédio e mudanças regulatórias
A primeira referência de Bolsonaro à hidroxicloroquina foi em uma live em 19 de março de 2020, quando o presidente, sem citar a droga nominalmente, afirmou que “os Estados Unidos liberaram um remédio com o potencial de tratar o coronavírus”.
Na verdade, o que havia acontecido naquele dia é que Donald Trump tinha pedido agilidade à agência FDA na liberação de terapias que pudessem ter efeito contra a covid-19.
A agência chegou a emitir autorização de “uso emergencial” à hidroxicloroquina e à cloroquina para um número limitado de casos hospitalares de covid-19, mas, no mês seguinte, advertiu contra seu uso e, em 15 de junho, foi além: revogou a autorização para o uso emergencial da droga, argumentando que “diante de eventos cardíacos sérios e outros potenciais efeitos colaterais sérios, os conhecidos e potenciais benefícios da hidroxicloroquina não compensam mais os conhecidos e potenciais riscos do uso autorizado”.
Se a rejeição oficial à cloroquina na maior parte do mundo começou ainda no primeiro semestre da pandemia, no Brasil o caminho foi o oposto.
Entre março de 2020 e janeiro de 2021, houve ao menos quatro medidas federais promovendo diretamente ou facilitando a prescrição do medicamento, segundo o levantamento Direitos na Pandemia, feito por pesquisadores do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP (Cepedisa) em parceria com a Conectas Direitos Humanos.
Entre essas medidas estão um protocolo do Ministério da Saúde de 20 de maio de 2020, recomendando o uso da cloroquina em todos os casos de covid-19, e o aplicativo TrateCov, também do ministério, que sugeria a médicos a prescrição de drogas como hidroxicloroquina, cloroquina, ivermectina e azitromicina, mas foi tirado do ar pouco depois.
3 – Trocas de ministros
A aposta na cloroquina virou o estopim para a saída de dois ministros da Saúde nos primeiros meses da pandemia: Luiz Henrique Mandetta foi demitido em 16 de abril de 2020 e Nelson Teich entregou o cargo em 15 de maio.
Em livro publicado em setembro do ano passado, Mandetta escreveu que “ele (Bolsonaro) queria no seu entorno pessoas que dissessem aquilo que ele queria escutar. (…) Nunca na cabeça dele houve a preocupação de propor a cloroquina como um caminho de saúde. A preocupação dele era sempre ‘vamos dar esse remédio porque com essa caixinha de cloroquina na mão os trabalhadores voltarão à ativa, voltarão a produzir’. (…) O projeto dele para combate à pandemia é dizer que o governo tem o remédio e quem tomar o remédio vai ficar bem. Só vai morrer quem ia morrer de qualquer maneira”.
E Teich, ao anunciar sua demissão e ser substituído por Eduardo Pazuello, declarou que não queria “manchar minha história por causa da cloroquina”.
4 – Bolsonaro pega covid-19 e se trata com hidroxicloroquina
“Estou muito bem e credito isso não só ao atendimento dos médicos, mas pela forma como ministraram a hidroxicloroquina, que (teve) reação quase imediata. Poucas horas depois já estava me sentindo muito bem”, disse Bolsonaro a jornalistas em 7 de julho, quando confirmou que havia testado positivo para a covid-19.
Antes e depois de seu diagnóstico, Bolsonaro deu muitas declarações promovendo o medicamento entre a população.
“Quem for de direita toma cloroquina, quem for de esquerda toma tubaína”, afirmou em maio do ano passado. “Sou a prova viva de que a cloroquina deu certo”, disse o presidente em agosto.
Por várias vezes, Bolsonaro se deixou fotografar e filmar com embalagens de cloroquina, no que foi considerado por muitos uma autêntica campanha promocional do medicamento.
Um dos mais expressivos destes momentos foi quando o presidente mostrou uma caixa de cloroquina às emas que habitam os jardins do Palácio da Alvorada. Os animais olhavam surpresos para o presidente que, sorridente, lhes mostrava a embalagem do medicamento.
Essas atitudes levaram críticos do presidente a dizer que Bolsonaro tinha se tornado o maior “garoto propaganda” do remédio no Brasil e que suas declarações colaboravam para confundir a opinão pública disseminando a falsa impressão de que o medicamento era capaz de prevenir o agravamento da covid-19.o que permanece sem comprovação científica.
No entanto, do ponto de vista científico, a cura de Bolsonaro não pode ser atribuída à cloroquina: em parte das pessoas contaminadas pelo coronavírus, o curso normal da covid-19 é a eliminação do vírus pelo organismo sem a necessidade de internação ou de medicação.
“Não há controvérsia em torno da cloroquina pelos cientistas, como às vezes se dá a impressão. Todas as entidades de saúde indicam seu banimento. Estudos apontam para sua ineficácia em casos leves ou graves de covid-19 desde o primeiro semestre de 2020”, diz à BBC News Brasil a médica Karina Calife, professora do Departamento de Saúde Coletiva da Santa Casa de São Paulo e coautora, na Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, de uma nota técnica sobre a hidroxicloroquina que será disponibilizada à CPI da Covid.
“Do ponto de vista da ciência, (o uso da cloroquina) é indefensável por um profissional de saúde. Existe entre médicos uma divergência pontual (em referência aos médicos que defendem a droga e a receitam), mas ela não está baseada na ciência. E a boa prática médica tem que estar baseada em evidências”, prossegue Calife.
5 – “Tratamento precoce”
A despeito disso, a promoção dos medicamentos evoluiu para a defesa, por parte de Bolsonaro e do ministério sob Pazuello, do que passou a ser chamado “tratamento precoce”, coquetel de remédios que inclui a hidroxicloroquina, a azitromicina, a ivermectina e a nitazoxanida, além dos suplementos de zinco e das vitaminas C e D.
“O tratamento precoce salva vidas. Por isso, temos falado dia após dia, ‘não fique em casa’, receba o diagnóstico clínico do médico. Receba o tratamento precoce”, disse Pazuello, em seu discurso de posse como ministro, em setembro.
Um mês depois, Bolsonaro questionou a corrida por vacinas, opinando que seria “mais barato e fácil investir na cura”. “Eu tomei a hidroxicloroquina, outros tomaram a ivermectina, outros tomaram Annita (nitazoxanida), e deu certo. E, pelo que tudo indica, todo mundo que tratou precocemente com uma dessas três alternativas aí foi curado.”
Em tuíte que mais tarde foi apagado, o perfil do Ministério da Saúde orientava as pessoas: “ao apresentar sintomas da covid-19, #nãoespere, procure uma unidade de saúde e solicite o tratamento precoce”.
Nada disso tem qualquer embasamento científico. Em março deste ano, um painel de especialistas internacionais da Organização Mundial da Saúde publicou estudo no periódico BMJ apontando que a hidroxicloroquina não deveria ser usada como preventivo à covid-19, uma vez que o medicamento “não teve efeito significativo na infecção por covid-19 confirmada em laboratório e provavelmente aumentava o risco de efeitos adversos”.
Em janeiro deste ano, Pazuello mudou discurso, afirmando que o Ministério da Saúde havia defendido o “atendimento precoce”, e não o “tratamento precoce”, algo contradito por suas declarações prévias e pelas iniciativas do ministério.
Em relatório que mensura a desinformação durante a pandemia, a organização Artigo 19 afirma ter feito quatro pedidos de esclarecimento ao Ministério da Saúde sobre o “kit” de medicamentos do tratamento precoce, mas nenhuma das respostas esclareceu o embasamento científico por trás da recomendação oficial. “Há o risco de uso da máquina pública para disseminar equívocos, mitos e notícias absolutamente desprovidos de bom senso, que afetam a população como um todo em suas garantias mais básicas, como vida e saúde”, diz o relatório.
6 – CPI da Covid
A CPI da Covid, em curso no Senado para investigar ações e omissões do Poder Executivo na pandemia, voltou a trazer a hidroxicloroquina para o centro dos debates.
Questionado a respeito, o ex-ministro Eduardo Pazuello afirmou que “29 países do mundo têm protocolos de uso da cloroquina para a covid-19, então não é tão difícil entender que o médico olhe para isso e tente usar o medicamento off label (para um uso diferente do prescrito na bula, de modo experimental). Redigimos uma nota informativa (nota técnica 17) seguindo o Conselho Federal de Medicina dando autonomia aos médicos: ‘se você prescrever, atenção para a dosagem de segurança e não use na fase final da doença, que não é a melhor forma de usar'”.
Essa nota técnica foi criticada pelo documento da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas, que diz que “essa recomendação tem ocorrido a despeito de sua rejeição técnico-científica por múltiplas entidades médicas e regulatórias”. O documento pede que as drogas que compõem o “tratamento precoce” sejam banidas em pacientes com covid-19.
No segundo dia de depoimento, Pazuello disse que nunca mandou comprar no ministério nenhum comprimido de hidroxicloroquina. Sobre o aplicativo TrateCov, declarou que o programa foi “hackeado e lançado por um hacker”. No entanto o TrateCov foi lançado oficialmente pelo Ministério da Saúde, com direito a programa na TV Brasil e postagens no Twitter para promoção do aplicativo.
Ainda na CPI, o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta afirmou, em seu depoimento, em 4 de maio: “Me lembro de ele (Bolsonaro) perguntar sobre a cloroquina, falar sobre isolamento vertical, que era algo que a gente não recomendava. Mas ele tinha provavelmente alguma outra fonte, aí teria que perguntar pra ele”, em referência ao “aconselhamento paralelo” que críticos dizem haver no governo para orientar a tomada de decisões pelo presidente – algo que aliados negam.
Em 11 de maio, o presidente da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), Antonio Barra Torres, reafirmou em seu testemunho perante os senadores que todos os estudos científicos confiáveis concluídos até o momento apontam que a cloroquina não funciona contra a covid-19.
Barra Torres disse que não houve pressão do governo federal sobre a agência para a aprovação da cloroquina para o combate ao coronavírus, mas confirmou que foi levantada a possibilidade de se mudar a bula da cloroquina em uma reunião de ministros.
“Só quem pode modificar a bula de um medicamento registrado é a agência reguladora do país (a Anvisa), mas desde que solicitado pelo detentor do registro”, declarou Barra Torres.
Ou seja, a mudança poderia acontecer se requisitada pelos laboratórios que produzem a cloroquina, caso se confirmasse cientificamente que o medicamento é eficaz para outras finalidades — o que não foi o caso até o momento.eja a seguir o histórico de como essas drogas destinadas originalmente para tratar malária, artrite e lúpus ascenderam durante a pandemia e acabaram, no Brasil, incorporadas a discursos e iniciativas governamentais brasileiras que destoam da recomendação de agências internacionais e também de evidências científicas.