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Sem língua afiada, o corpo é inerte e a cabeça padece

Apesar de considerada uma necessidade íntima, a expressão vou me já é um dos cacófatos mais utilizados na complicada e difícil língua português. Há outros piores, como Bulhões de Carvalho e o triunfo deu-se. Nenhum deles, porém, é pior do que as gafes que até hoje são comuns em testes psicotécnicos orais para preenchimento de cargos parlamentares ou de direção. Como as perguntas e respostas são no tête-à-tête, isto é, na lata, já ouvi e li absurdos chulos, engraçados, esquizofrênicos e alguns pra lá de estrogonóficos. Por exemplo, em uma prova capacitadora, como pode alguém achar que o melhor movimento da mulher ainda é o dos quadris. Acharam.

Ao ler tal disparate, disse ao candidato que fechava com ele mesmo que estivéssemos em uma missa de sétimo dia, mas nunca em uma arguição de concurso. Pior foi aquela de um postulante à única vaga para banhar equinos no Jockey Clube do Rio de Janeiro. Indagado a respeito do maior exportador de cavalos do mundo, o noviço no assunto não titubeou: “É a Noruégua“. Há uma certa lógica na resposta do aprendiz. Entretanto, para os integrantes da banca revisora a dose cavalar de burrice falou mais alto. Provavelmente o sujeito também responderia que o tipo ideal de montaria para uma pessoa baixa seria um pônei.

Situação parecida viveu o gerente de uma pequena fábrica suburbana de alpercatas. Na primeira entrevista, ele resolveu cancelar a vaga. Preferiu ficar sem o auxiliar ao ouvi-lo dizer que a China é o maior produtor de chinelo. Um dos poucos testes psicotécnicos de que participei teve como “vítima” o amigo de infância Jorge Negão (tenho autorização autenticada para acrescentar o apelido ao nome). Vivíamos em um bairro que sediava a fábrica de açúcar União, uma das maiores dos nossos anos de glória. Referência econômica para o subúrbio, infelizmente a empresa faliu sem nos dar uma única razão.

Como a vaga era para a estiva do antigo Cais do Porto do Rio de Janeiro, a pergunta foi das mais simplórias. De frente para o inquisidor, Jorge nem piscava. De meia idade, o representante do RH de uma das fornecedoras do Cais, tascou a pergunta: “A união faz a, a, a, a…” Nem um segundo de dúvida e Jorge retascou: “Açúcar”. Reprovado pela inata, improcedente, espontânea e cândida retórica, o parça acabou aprovado pelo avantajado porte físico. Jorge era do tipo que não perdia viagem. Jamais desistiu de seus sonhos. Se acabava em uma padaria, ele procurava em outra.

Engana-se quem acha que essas gafes são cometidas somente por pessoas ingênuas, despreocupadas ou absortas. Um médico com cargo de chefia em um famoso hospital público de Brasília quase caiu duro de sua cadeira sem assento e encosto ao ouvir de um colega da área de clínica geral que anatomia é uma coisa que os homens também têm, mas que, nas mulheres, fica muito melhor. Enfim, como é difícil confiar na língua quando o corpo não pensa. Nesse caso, é a cabeça que padece. Ou seria o contrário?

Os lapsos ou escorregadelas vernaculares não são exclusivos dos psicotécnicos. No dia a dia é comum ouvirmos uma pessoa inconveniente e deselegante dizer ao interlocutor que ele é tão baixo que poderia usar um travesseiro como cama e ainda ter espaço para se mexer. Guardei para o fim a pior de todas. Pior porque foi dita em sala de aula e a um professor emérito de geografia. Após afirmar que os gentílicos de quem nasce em Friburgo, Santa Catarina, Pavuna e Colatina é, respectivamente, friburguense, catarinense, pavunense e colatinense, o docente quis saber o dos nascidos em Cambuci. De envergonhar até os surdos, a resposta antecipou a aposentadoria do sério educador: “Cambucetense“.

*Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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