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Nobel de literatura

Sem obra reconhecida, Josias, o sertanejo, morre alvejado por fiosdeumaégua

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Produção Francisco Filipino

Começou com uma brincadeira. Ou melhor, como a colocação da cereja no bolo, o coroamento da construção de um avatar literário.

O criador do avatar chamava-se Josias, tinha 63 anos, vivia no sertão pernambucano e era escritor. Não se considerava assim, era mesmo, e um escritor bem razoável. Mas ele queria mais, desejava que seus livros atraíssem multidões, seduzissem os críticos, atravessassem os séculos.

Sonhava com a glória literária, em atingir o patamar em que se encontrava seu ídolo, o russo Fiódor Dostoiévski.

Só que a São Petersburgo do século XIX não é a Recife do século XXI, as estepes geladas da Rússia não são a caatinga esturricada pelo sol do sertão. Nenhuma editora brasileira de porte entrava em contato com ele, suplicando para publicar seus textos. As pequenas editoras nordestinas também o ignoravam: eram um bando de imbecis, repetia, que não nvalorizavam o talento local. Em tais circunstâncias, os poucos livros que Josias publicara foram editados por conta própria, sem apoio de divulgação, e não venderam nem receberam críticas consagradoras. As redes sociais ofereciam um mínimo de reconhecimento para sua produção, mas não a glória ansiada.

Quem sabe, ela viria com a construção de um avatar? Ele não seria muito diferente de seus personagens e do próprio Josias. Ele povoava seus textos de gente sem um tostão, que se virava como podia, castigada pelo alcoolismo mas que conservava a solidariedade e a alegria de viver. O autor também era assim, em certa medida; pois bem, o avatar teria essas características ampliadas: sempre tentando descolar algum para a próxima dose, o próximo baseado, sempre louco, mas encontrando um porto seguro no convívio com seus pares e no contato com seus amados clássicos da literatura. Seus avós conduziam rebanhos pelo sertão; o neto via seu avatar como um pastor de personagens e palavras. Não um pastor da Arcádia em meio a ninfas, o arcadismo era uma corrente literária morta havia muito tempo; algo mais próximo (mas não na mesma linha) dos pastores da noite, título de um livro de Jorge Amado. Era isto: um pastor de palavras.

Foi então que lhe veio a ideia da cereja no bolo, de fazer “seu” personagem sonhar com o Prêmio Nobel de Literatura. Sabia que isso provocaria reações de incredulidade – o quê? Um autor desconhecido desejar o mais alto galardão literário? – mas também reforçaria a dimensão quixotesca do avatar, comovendo leitores e críticos. Não custava tentar.

Só que o tempo foi passando, a profusão de leitores não veio, a chuva de críticas estimulantes não ocorreu (chove pouco, no sertão)… Em contrapartida, contaminado pelo avatar, Josias passou a sonhar com o Nobel de Literatura para si próprio. De início, em devaneios, do tipo “Seria legal se os suecos dessem o prêmio a um escritor sertanejo praticamente desconhecido”. Depois, com uma gastura que aumentava a cada ano, a cada rejeição – a cada premiação de um escritor que não ele. A cerimônia da entrega do prêmio tornou-se uma fonte de tormento. Nessas noites, bebia até cair, desmaiado.

A gota d’água foi a concessão do prêmio a uma sul-coreana. Ele havia engolido (fazer o quê?) agraciados europeus, norte-americanos e, numa guinada terceiro mundista da Academia sueca, latino-americanos, indianos e de populosos países muçulmanos. Mas uma sul-coreana? Por que não premiar, em vez disso, um sul-americano do sertão de Pernambuco chamado Josias?

Literato na última, recordou uma passagem de El siglo de las luces, do cubano Alejo Carpentier, em que, num levante, a multidão madrilena investe contra os invasores franceses com armas improvisadas, “de cuanto pudiese cortar, herir, hacer daño”. Que pena, os engravatados suecos eram inatingíveis, mas havia outros, de gravatas fora de moda e ternos baratos, na Academia de Letras da cidadezinha em que morava. Mostraria a esses fiosdeumaégua, que se imaginavam europeus, haviam cortado seus laços com a caatinga e desprezavam os escritores ligados à gente pobre e sofrida da região, que um sertanejo digno desse nome também pode cortar, ferir e causar dano. Vestiu seu gibão de couro, empunhou a peixeira, foi para a porta da Academia e retalhou todos que cruzavam seu caminho, até ser abatido a tiros.

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