O Senado deve votar nesta terça-feira (02/06) o PL das Fake News, um projeto de lei com objetivo de combater a divulgação de notícias falsas nas redes sociais, em um momento de crescente preocupação com a circulação de informações incorretas sobre a pandemia de coronavírus e também envolvendo ataques a figuras políticas e ministros do Supremo Tribunal Federal (STF).
A proposta, porém, enfrenta oposição de grupos que veem risco de redução da liberdade de expressão caso ocorra sua aprovação. Entre os críticos estão desde apoiadores do presidente Jair Bolsonaro a organizações sem relação com o governo que atuam na área de direito digital. Essas organizações integram a Coalização Direitos na Rede e defendem que outra proposta de regulação seja elaborada a partir de um debate mais aprofundado.
Procuradas pela reportagem da BBC News Brasil, grandes empresas do setor como Facebook (dona também de Instagram e WhatsApp), Google (dona do YouTube) e Twitter também defenderam a necessidade de uma discussão mais ampla sobre o tema.
Defensor da proposta, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, disse, por meio de sua conta no Twitter, que “o objetivo é fortalecer a democracia por meio do combate a informações falsas. Por isto, barrar as fake news é um serviço em prol da liberdade, da boa informação e da verdade. Aqueles que espalham fake news devem ser punidos com os rigores da lei”, afirmou.
Já a deputada Carla Zambelli (PSL-SP), uma das principais apoiadoras de Bolsonaro no Congresso, argumentou, também pelo Twitter, que “a lei brasileira já dispõe de mecanismos para a retirada de calúnias e difamações das redes sociais”. Segundo ela, “o PL 2630/2020 criará verdadeiros TRIBUNAIS DE EXCEÇÃO nas redes sociais, em que ‘checadores de fatos’ não concursados decidirão o que cidadãos comuns poderão postar”.
O presidente e seus aliados enfrentam acusações de usar uma rede articulada de divulgação de notícias falsas para atacar adversários políticos que seria operada de dentro do Palácio do Planalto pelo chamado “Gabinete do Ódio”.
Na quarta-feira passada, parlamentares, empresários e ativistas bolsonaristas que participariam dessa rede foram alvos de uma operação da Polícia Federal autorizada pelo ministro do STF Alexandre de Moraes, dentro do inquérito das Fake News.
Bolsonaro e seus aliados negam a existência do Gabinete do Ódio, se dizem vítimas de notícias falsas e afirmam que estão sendo censurados por um inquérito aberto ilegalmente pelo presidente do STF, Dias Toffoli. A previsão é de que o plenário do Supremo julgue no dia 10 de junho um recurso que pede o arquivamento dessa investigação.
O PL das Fake News foi elaborado pelo senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) em parceria com os deputados Tabata Amaral (PDT-SP) e Felipe Rigoni (PSB-ES). Eles negam que a proposta preveja censura já que o PL não determina a exclusão de qualquer conteúdo das redes sociais.
No entanto, devido às críticas, eles sugeriram na segunda-feira (01/06) retirar alguns pontos delicados do projeto original, como a previsão de que plataformas como Facebook, Twitter e YouTube deveriam informar seus usuários quando determinado conteúdo fosse classificado como desinformação por checadores independentes. A grande controvérsia nesse ponto é transferir demasiado poder a essas plataformas verificadoras para determinar que conteúdo deve ou não ser considerado verdadeiro.
Agora, a proposta desses parlamentares prioriza o combate à atuação de contas automatizadas (robôs) e inautênticas (com identidade falsa, para enganar o público).
“Nosso foco é tirar de circulação as ferramentas que são usadas criminosamente: contas falsas e redes ilegais de distribuição e desinformação”, disse Alessandro Vieira, em entrevista coletiva.
No entanto, os três parlamentares passaram a defender outra questão controversa: incluir no PL que usuários de rede social sejam obrigados a confirmar sua identificação e localização, “inclusive por meio da apresentação de documento de identidade válido” às plataformas, com objetivo de coibir a atuação de robôs não identificados e contas falsas.
O texto que irá a votação será fechado pelo relator do PL, senador Angelo Coronel, e não foi divulgado com antecedência, o que gerou novas críticas dos opositores da proposta.
“É um tema super complexo, que está em debate no mundo, e nem sabemos o texto que será votado nesta terça. Não é nem um pouco razoável acelerar a votação desse projeto”, afirma Mariana Valente, professora do Insper e diretora do InternetLab, uma das organizações que integra a Coalização Direitos na Rede.
Para Valente, a exigência de um documento é uma quebra de privacidade dos usuários da rede, que pode comprometer sua liberdade de expressão. Ela ressalta que, por meio de decisões judiciais, já é possível descobrir o IP (identificação única para cada computador conectado a uma rede) do usuário e, assim, identificar quem está por trás da conta, no caso de investigações criminais.
“A pessoa se comunicar o tempo inteiro revelando quem é tem efeitos imensos, não só para a comunicação política, mas para outras expressões da personalidade”, afirma a professora.
“Por exemplo, pessoas homossexuais que vivem em ambiente repressivo podem querer encontrar outras pessoas nas redes, trocar informações, sem estarem identificadas”, reforça.
Usuário protegido
Os autores do PL argumentam que sua proposta eleva a proteção ao usuário contra a exclusão de conteúdo. Eles destacam que as plataformas de redes sociais já apagam ou classificam conteúdos de usuários como falsos, segundo critérios próprios, em processos com pouca transparência.
Em 30 de março, por exemplo, Facebook e Instagram deletaram um vídeo compartilhado nas contas oficiais de Bolsonaro, em que o presidente promovia o uso de hidroxicloroquina para tratamento de covid-19, embora sua eficácia para esse fim não tenha sido comprovada em estudos científicos.
“Removemos conteúdo no Facebook e Instagram que viole nossos Padrões da Comunidade, que não permitem desinformação que possa causar danos reais às pessoas”, informou o Facebook em nota, na ocasião.
Um dia antes, o Twitter apagou duas mensagens publicadas por Bolsonaro com vídeos de um passeio que o presidente havia feito em uma área comercial no Distrito Federal. A empresa declarou que as postagens de Bolsonaro violaram as regras de uso da plataforma por potencialmente “colocar as pessoas em maior risco de transmitir covid-19”.
No PL das Fake News, os parlamentares propõem que as plataformas de redes sociais sejam obrigadas a oferecer por três meses a possibilidade de recurso aos usuários quando tiverem mensagens apagadas. Além disso, caso seja posteriormente identificado que a exclusão foi indevida, sua proposta prevê que “caberá ao provedor de aplicação de internet reparar o dano, informando o erro de maneira destacada e garantindo a exposição da correção, no mínimo, aos usuários inicialmente alcançados”.
Uma pesquisa realizada pelo instituto Ibope, contratada pela organização Avaaz, aponta que 90% brasileiros apoiam a regulamentação das plataformas de redes sociais para combater as fake news.
Segundo o levantamento, que entrevistou mil pessoas por telefone, 81% também se mostraram favoráveis a uma lei que obrigue as empresas de redes sociais a mostrarem artigos com checagem de fatos independentes para todas as pessoas expostas a conteúdo falso ou enganoso.
Esse é justamente um dos pontos polêmicos que os autores do PL das Fake News sugeriam retirar do texto que vai à votação nesta terça, já que há controvérsia sobre como os conteúdos seriam classificados como desinformação e por quem.
Os três parlamentares sugeriram, então, que o projeto de lei dê prazo de um ano para que o Comitê Gestor da Internet no Brasil — órgão composto por representantes de governo, empresas, organizações do terceiro setor e comunidade científica — crie um grupo multissetorial para elaborar uma nova proposta que “contenha a conceituação da desinformação, formas de combate e boas práticas”.
A rede ativista Avaaz, que não integra a Coalização Direitos na Rede, é a favor de que as plataformas sejam obrigadas a apontar aos usuários conteúdos identificados como falsos por checadores independentes. A organização defende também que as empresas não possam ampliar a visibilidade dessas informações por meio de seus algoritmos.
Para a Avaaz, a desinformação ameaça diversos direitos, como o direito à saúde, no caso de conteúdo falso sobre a pandemia, ou o direito ao voto, quando mensagens enganosas circulam durante eleições.
Segundo a coordenadora de campanhas da Avaaz Laura Moraes, a organização defende celeridade na aprovação de uma lei que inclua essa obrigação, mas concorda com a Coalização Direitos na Rede que a votação no Senado não deveria ocorrer nesta terça-feira.
“São 9 da noite (de segunda-feira) e ainda não sabemos qual texto será votado”, criticou.
Mais debates
Uma porta-voz do Facebook ouvida pela reportagem disse que a empresa apoia uma discussão mais detalhada da proposta em análise no Congresso: “Nos colocamos ao lado de organizações de defesa dos direitos na internet ao apoiar que projetos de lei sejam resultado de amplo debate público, para garantir que não representem ameaça à liberdade de expressão e para evitar que tragam insegurança jurídica ao setor”, afirmou.
No mesmo sentido, o Google, por meio de nota, disse que compartilha “da preocupação de entidades da sociedade civil, grupos acadêmicos e especialistas sobre a necessidade de um debate público mais amplo e informado a respeito de propostas legislativas que busquem soluções para problemas complexos, como o da desinformação”.
O Google disse ainda que “segue comprometido no combate à desinformação no Brasil, com uma abordagem em várias frentes, oferecendo informações úteis, relevantes e de qualidade para as pessoas, ao mesmo tempo em que atualiza e aplica suas políticas sobre conteúdo e desenvolve ações para apoiar o jornalismo profissional, as organizações de checagem e iniciativas de educação midiática.”
Em posicionamento enviado à BBC News Brasil, o Twitter disse acreditar “que o importante e complexo debate sobre políticas de enfrentamento ao tema da desinformação deve ser amplo e cauteloso, permitindo seu amadurecimento e a construção de consensos, para que não haja o risco de resultar em supressão da liberdade de expressão e informação, conforme vêm alertando as principais organizações de defesa de direitos na internet”.