O fim do Delfim
Signatário do AI-5, bolo no povo e sem condão para fazer milagre econômico
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emMorreu Delfim, o neto com dois tês de um contemporâneo de meu velho pai, Mathuzalém Sênior. O fim do Delfim não representa o começo do nada. Foi o fim de um princípio que durou 21 anos, mas faz 39 anos que se foi. E queira Deus que ele (o princípio) fique por lá. Não sei onde, mas que esteja bem longe de nós, algo como nos quintos das seis marias do sétimo dia. Tudo tem fim, mas Delfim aproveitou o que pode. Notável como economista e erudito como cidadão, foi ministro de peso, político pesado por cinco legislaturas consecutivas e consultor de fala leve de 11 entre dez poderosos. Além dos generais, atendeu solicitamente até Luiz Inácio da Silva
Delfim foi um homem inteligente e bom, mas muito próximo do mal. Aos 96 anos, ele se imaginava perto do fim, pois tinha certeza de que estava bem longe do início. Enfim, a partida do quase eterno czar da economia brasileira deu fim a uma época de tristes lembranças e de falsos milagres econômicos, democráticos, sociais e esportivos. O maior deles foi transformar o folclórico Dadá Maravilha em tricampeão do mundo em 1970, mesmo sendo reserva de luxo de uma seleção brasileira com craques de A a Z, de Zagallo. Mesmo no banco, não entrou em nenhum dos sete jogos da competição.
Como Delfim, Dario era bom sujeito, ótimo papo e melhor frasista, embora um clássico perna de pau. No entanto, foi artilheiro em todos os clubes pelos quais passou. Eis a única razão de ter caído nas graças de um cabuloso condutor quatro estrelas do mais tenebroso Bonde do Tigrão que já circulou pelo Brasil. Era a dita dura. Nas horas vagas, o comandante cheio de divisas usava de seus ensinamentos médicinais (o assento não é mero esquecimento) para também conduzir às sombras do vale da morte quem atravessasse seu caminho.
Torcedor “fanático” de todos os clubes de massa, entre eles Flamengo, Corinthians e Grêmio, quando podia dava uma de técnico do escrete canarinho. É de sua lavra o convite quase paternal para a forçada inclusão de Dario no selecionado nacional, ao lado de Pelé, Rivelino, Gérson, Jairzinho, Tostão, Carlos Alberto, Paulo César Caju, Clodoaldo e mais uma constelação de malabaristas com a pelota. Eram os 11, 17 ou 22 homens de ouro que haviam sido maracanamente adorados pelos sete homens de chumbo que conduziram nossos destinos e, por isso, poupados pelo AI-5, ato gerador de um dos períodos mais duros e sombrios de nossa história republicana.
Delfim, que também atendia pelo prenome Antônio, foi signatário do AI-5 e dele jamais se arrependeu. Pelo contrário. De certa feita, disse que assinaria se voltasse no tempo. Não voltará. De volta ao fim que Deus deu ao Del, eu e os do meu tempo chegamos a achar que, com o sonho prometido pelo Delfim e pelos presidentes militares aos quais ele serviu, que bastavam dois passos para o paraíso. Quando nos demos conta, descobrimos que, na verdade, estávamos a três palmos do precipício. Recentemente, quase atingimos o sétimo palmo. Fomos salvos na praça pelas palmas dirigidas pelo povo a um dos sobreviventes do naufrágio da Arca de Noé lotada de trogloditas e pilotada pelo bom, pelos maus e pelos feios.
Junto com a quebradeira, também se quebrou aquele que sonhou um dia ser o oitavo dos sete homens que, à força, comandaram nossos destinos por longos anos. Último tripulante da barca, Delfim talvez fosse hoje o maior reflexo da inteligência artificial. Era, ao mesmo tempo, talentoso, lustroso e genialmente contraditório. Protagonista de uma fase da história brasileira, testemunhou decisões catastróficas e colaborou como constituinte com a Carta que ajudou a consolidar a democracia. Como integrante de governos ditatoriais, participar técnica e politicamente da Constituição de 1988 foi seu mea culpa como celebrado servidor da Redentora de 1964. Delfim morreu sem cumprir uma de suas maiores promessas como homem público.
Ministro da Fazenda, ele deu uma de Irmã Dulce e jurou de pés juntos, mas com os dedos cruzados, que faria o “bolo crescer para depois dividi-lo”. A ideia era impulsionar o PIB para, em seguida, dividir a riqueza entre a população. O bolo solou ou foi retirado do forno antes do completo processo de assadura. Talvez tenha sido dividido ainda na forma, porque os ricos ficaram e continuam mais ricos, enquanto os pobres nem os farelos viram. Delfim morreu olimpicamente devendo essa. Quem sabe ele aproveita as migalhas do bolo para uma festa funk no céu. Em grande união, seria um convescote estrelado pelos rappers verde oliva, tendo como fundo musical o Hino Nacional, executado pela banda da fé. Por fim, a morte do Delfim selou um destino traçado desde o berço: depois do poder incomum à plebe, o pijama de madeira é comum a todos, inclusive à fidalguia.
*Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978