Notibras

Silêncio da buzina e falta de aceno frustram sonho de amor

Eu andaria a cidade inteira à procura daquela mão. Ou à procura da dona daquela mão. Viriam juntos a outra mão, os braços, os olhos, os cabelos, os joelhos… Tudo ainda era um corpo imaginário, uma voz imaginária, uma personalidade imaginária com seus gostos, histórias e ideias. Um ser inteiro desconhecido, mas que eu já gostaria de agradar, fazer rir, trazer a ela conforto, carinho, ficar no aconchego do lar, lar que construiríamos ou, dali em diante, eu construiria para ela. Para nós. Apenas para esperá-la, com tudo que ela gostasse e quisesse. Mas como saber a maneira de arquitetar um lar se eu sequer sabia quem ela era?

Foi numa curva, perto da rodoviária, dentre milhões de outros carros da cidade, deviam ser umas cinco e quarenta e nove da tarde de um dia nublado e frio. Eu, que gosto de Fuscas – a minha infância inteira foi permeada por eles, dirigidos por meu pai, por meus tios, meu avô – e andava seriamente pensando em comprar um para passear por aí e me divertir, encontrei, no meio do trânsito engarrafado, um Fusquinha bem antigo, de um lindo tom de azul. Devia ser dos fabricados em 1965 ou 1966, eu sei lá, não identifiquei direito pelos detalhes.

Quase inconscientemente, quando as pessoas se deparam com um Fusca mais velhinho no trânsito, ao volante de seus automóveis modernos e rápidos, acabam saindo de trás, ultrapassando, mas eu fiquei ali, tenaz, na avenida movimentada e entre os sinais, seguindo o pequeno carro, apreciando seus volumes atípicos, sua pintura desbotada mas digna, os pneus finos, a discreta dança da suspensão respondendo às imperfeições do asfalto, as pequeníssimas lanternas traseiras que acendiam a luz de freio quando ele parava. Era como o tempo cristalizado e palpável à minha frente. E quantas memórias boas traziam a mim aquele Fusca! De viagens, de aventuras, de domingos com a família, dos churrascos em casas amigas que sequer existiam mais.

Foi quando, dentro de mim, surgiu uma chama: saiu da janela da porta do motorista, num movimento firme e rápido, a mão da motorista para fazer um pequeno ajuste no retrovisor, durante aquele insosso engarrafamento. Foram poucos instantes, mas suficientes para eu ficar fascinado por aquela mão. Era branca, pequena, tinha um formato harmônico, equilibrado…

Descobri em seguida um pulso, que ostentava pulseiras. Eram prateadas. E também um relógio. Depois do pulso, o início de um antebraço que se escondia por dentro da manga de uma camisa com o punho dobrado. O tempo parou e eu descobri que vivera até então para amar a dona daquelas pulseiras e daquele relógio.

Vários pensamentos se passavam pela minha mente nos momentos que se seguiram. E se o Fusca nem fosse dela, fosse do marido? Ela poderia estar no auge de seu amor, num casamento feliz, indo encontrar o marido em algum lugar para contar sobre a recém-descoberta gravidez… E, se assim fosse, eu não teria qualquer papel nesse roteiro, nem me permitiria ousar interromper esse idílio de romance. Preferiria ficar só, para sempre.

Mas ela podia ter passado por uma decepção com um ex-namorado recente, e ter tido às amigas ontem, num happy hour, meio brincando e meio falando sério, que iria sair hoje para paquerar no trânsito, e aceitaria o flerte do primeiro bonitão que lhe desse uma buzinada. Por isso ia devagar com seu Fusquinha. Isso não iria adiantar. Eu não me achava bonitão, tampouco toquei na buzina do meu carro.

Nada se comparava com o momento em que eu vi aquela mão, o que me bastou para amar imediatamente todo o conjunto. Tudo era suposto, mas eu não me importava. A mão que fizera um toque breve e decidido para recolocar o retrovisor em sua posição necessária despertou em mim uma certeza impressionante. Tudo ficaria bem a partir daquele momento, bastaria seguir em frente na companhia daquele Fusca, daquele dia nublado, daquelas pulseiras, dos relógios, da lanterna acesa, daquela mão.

E como seriam os pés descalços? Como seria o perfume dela e o gosto musical? Não sei, mas estava disposto a aceitar e adorar todo o conjunto, até a eternidade.

O que ela gostaria em mim? Estaria disposto a mudar qualquer coisa por ela, desde que favorecesse o propósito de nunca mais nos separarmos nesta vida. Ao mesmo tempo, brotava em mim uma certeza de que nada seria preciso mudar em nós dois – o encontro seria perfeito e seríamos seres complementares, escolhidos a dedo para nos encaixarmos perfeitamente como duas engrenagens para mover o universo. Só bastaria emparelhar o carro, uma troca de olhares e tudo se faria novo sob o sol. Ainda que o sol não brilhasse mais àquela hora, naquele dia frio e nublado, ainda que fosse quase noite. Os faróis dos carros já estavam sinalizando…

Foi aí que, próximo de uma transversal à direita, o Fusca, que se conservava na pista central, foi para a da direita, conforme sinalizara o pisca-pisca. Logo à frente, saiu da via principal e entrou numa rua. Atônito, eu não consegui retomar o raciocínio prático a tempo e acompanhar a manobra e, se o fizesse, acabaria derrubando um motociclista que vinha ligeiro pelo meio da fila de carros.

Desde esse dia, eu fico por aí dirigindo pela cidade, sozinho, triste, procurando, arrependido por não ter tentado emparelhar, por não haver buzinado, por não ter visto os olhos e a boca, além da mão, dos braços…
E o Fusca eu nunca mais vi. Deve estar circulando por outras vias, divergentes de mim, cada dia mais distante e mais azul.

*Texto republicado por ter sido editado com incorreções

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