Recente crônica que escrevi para Notibras sobre meu avô Waldemar Marchi repercutiu entre primos e outros parentes que vieram fazer comentários e perguntar fatos da vida daquele antigo cidadão valenciano, porque nascido na cidade de Valença, em 1915, e eu dei algumas respostas na presença sempre curiosa e atenta de meu filho.
Por mais que pareça distraído às vezes, ou alheio às conversas dos adultos porque focado nas suas diversões infantis, a cabecinha de meu garoto está sempre ligada como um radar no que eu falo, e, em recente ida a Paraíba do Sul para eu resolver uma questão muito prosaica – o tratamento em um terceiro molar inflamado, o vulgo dente siso e, sim, quando tenho de ir ao dentista preciso viajar mais de 100 quilômetros do Rio de Janeiro a Paraíba do Sul porque boca não se abre para qualquer um na vida, e eu já tenho intimidade suficiente com o Dr. Celso Motta para fazê-lo em seu consultório no simpático distrito de Werneck – tive a companhia dele.
Lá chegando, o siso não pôde ser operado por causa da inflamação, que deve ser precedida de um tratamento à base de antibiótico, adiando assim o problema. Aproveitamos a viagem para rever familiares, dar uma volta na cidade, até que a curiosidade do meu menino me fez um pedido inusitado: “Papai, me leva naquele cemitério antigo de Paraíba, pra ver os antepassados de que você fala.”
Subimos a velha montanha até as muralhas do velho campo santo, em volta do qual, antes do asfaltamento inclemente das ruas da cidade, o piso era de um pé-de-moleque irregular e difícil de se equilibrar em cima. Atravessamos o pórtico em cantaria de pedra, hoje displicentemente caiada – seria melhor conservar-lhe a originalidade – e adentramos naquela silenciosa cidade de tantos antepassados, nossos e de muitas outras pessoas que conhecemos, bem como de outros que jamais ouvimos falar.
Essa apresentação do cemitério havia sido feita a mim por meu avô, mais de 30 anos antes, a quem manifestei a mesma curiosidade de meu filho: ver os antepassados de que ele falava.
Fazia muitos anos que não ia ao cemitério de Paraíba do Sul. Refleti que, à primeira vista, ele sempre me parece bem menor do que quando meu avô me levou lá, embora haja sido até ampliado. Mas é que eu era pequeno, tinha uns 11 anos apenas, embora guardasse aquele dia na memória.
Recuperei mais ou menos o mesmo trajeto que meu avô fez comigo, e fui mostrando ao meu menino os jazigos, ajudando-o a ler as lápides e fazendo breves comentários sobre cada um daqueles remotos seres cujas histórias foram passadas a mim por meus avós maternos, que eram primos, e outros membros da família por tradição oral.
É certo que minha mente era terreno fértil para esses relatos, e meus avós e tios-avós, bem como os primos deles, gostavam que lhes desse atenção e os ouvisse sobre isso, um assunto que muitas pessoas não param para prestar atenção e perguntar.
Mas eu, que um dia seria grande admirador de Marcel Proust e Pedro Nava, adorava me inteirar daquelas fofocas de família, de seus dramas, de suas iras, de seus anos tristes ou felizes, e sentia que aquele conhecimento me punha em estado de cumplicidade com meus avós e seus contemporâneos.
Descendo, por parte de mãe, de uma família de pobres imigrantes italianos de Santo André de Cavasagra, Castelfranco Vêneto, que encararam uma terceira-classe de navio, saindo do porto de Veneza, com escala em Gênova, para encontrarem não sabiam bem ao certo o quê no Brasil.
Depois de um período de adaptação em Rio Preto, Minas Gerais, trabalhando na lavoura recém deixada pelos ex-escravizados, meu tataravô veio se aproximando do Estado do Rio: Porto das Flores, Rio das Flores e, finalmente, Paraíba do Sul, onde foi dono da fazenda da Chacarinha. Tudo dependeu de muito trabalho, de muito esforço, com pedaços de tranquilidade entremeados de alguns sofrimentos atrozes.
Meu tataravô, que nasceu Giovanni e depois virou “Seu João”, fixou-se definitivamente em Paraíba, e lá deixou a maior parte de seus descendentes. Sua mulher, Filomena, alguns anos mais velha que ele, cuidava de seus filhos e também trabalhava muito. No final de sua vida, nos anos 20, encontrei menções a ela em velhos jornais como sendo contribuinte de “imposto sobre profissões”, em meio a listas de outros nacionais e estrangeiros que exerciam suas atividades na região.
Dentre os filhos daquele casal formado por Giovanni e Filomena estava meu bisavô Marco Paolo, que virou “Seu Marquinhos”, e a Josefina, chamada de “Pina”, respectivamente pai de meu avô e mãe de minha avó. E houve outros irmãos, como Joana, Rosa, Luísa, Américo, Maria Luísa, Luís. Todos eles casados, alguns com muitos filhos, outros com poucos ou nenhum, a povoar as terras brasileiras.
São muitos parentes espalhados pela região, todos diretamente descendentes daquele antigo “Seu João”, que meu avô já havia me apresentado através de fantásticas histórias como a de que ele levantava três sacas enormes de farinha, uma em cada braço e a terceira com os dentes, e de como nocauteou um boi com um soco no focinho quando o animal derrubou com uma cabeçada um de seus netos, meu tio-avô Geraldo. No antigo cemitério meu avô o apresentou sob uma lápide de mármore, já um pouco escurecida, contendo um retrato que o mostra de chapéu, paletó e camisa pretos e um bigode enorme.
A convivência de meu avô com o avô dele foi muito próxima porque minha bisavó morreu cedo, deixando mais de uma dezena de filhos entre 15 e 2 anos de idade. Seu marido, o “Marquinhos”, acabou espalhando a filharada entre as casas de parentes que ajudaram a criá-los, e a tarefa concernente a meu avô e mais alguns coube aos donos da fazenda da Chacarinha. Portanto, ouvia essas histórias de primeira mão.
Coisas que o velho Waldemar havia vivido de perto, até o trágico fim de “Seu João” em 1926, quando meu avô tinha 11 anos de idade – e vieram mais mudanças, mais tios que eram “pais de criação”, até que meu bisavô reunisse novamente em volta de si os filhos que já estavam em idade adequada para o trabalho.
“Seu Marquinhos”, além de comerciante, era músico e foi maestro de algumas associações musicais, inclusive a Euterpe de Valença e a Três de Maio em Paraíba do Sul. Eu não cheguei a ver, mas minha mãe me conta sobre o armário cheio de partituras que ele mesmo escrevera o qual, uma vez por ano, era meticulosamente limpo por sua nora e sobrinha, minha avó, anos depois de sua morte, até que o material fosse doado para a banda da cidade. Fico me perguntando se ainda existem por aí seu trombone de vara ou seu clarinete, ambos dominados com maestria, doados junto com as partituras.
Passeando pelos jazigos, os mesmos mostrados ao meu filho na recente viagem, meu avô se deteve diante de um encimado por um anjinho que chora, levando o delicado dedo da mão direita ao olho, como a aparar uma lágrima, em que se lê o nome de Francisco. Casado com a “Tia Joana” de meu avô, o “Tio Chico” chegou a ser riquíssimo industrial em Paraíba do Sul, e ansiava levar suas fábricas para Barra do Piraí, tornando-as maiores e mais modernas, a ponto de ir à Europa em 1928 para pesquisar sobre maquinário elétrico e os avanços de seu ramo – a fabricação de tijolos, telhas, manilhas, filtros de água e ladrilhos hidráulicos.
A quebra da bolsa de valores em Nova Iorque, em 1929, e a revolução de Getúlio Vargas, em 1930, acabaram atrapalhando os planos do siciliano, filho de Carmine e Luigia, que se contentou em ficar na mesma cidade, no seu sobrado da rua Marechal Deodoro nº 3, de onde se ouvia o apito do trem na estação, até fechar os olhos definitivamente numa quente manhã de fevereiro de 1934. Até hoje é comum as antigas casas de Paraíba terem telhas francesas onde se lê “Francisco D’Ângelo & Cia Ltda”, ou “Cerâmica D’Ângelo, Parahyba do Sul, Estado do Rio”.
Meu avô entremeava seus relatos familiares com explicações sobre famílias amigas da cidade: Ciodaro, Visconti, Mannes, Costa, Pires, e eu apreciava os retratos e nomes daquela gente passada, da mesma forma que mostrava agora para meu filho, contando mais ou menos as mesmas histórias.
Percebi o quanto essas histórias são preciosas. Podem interessar a muitos ou a ninguém além de mim, mas são da gente que me deu, além do sobrenome, uma origem, um lugar, um fio de vida que eu continuo carregando e passarei a diante.
Mas, se eu não contá-las, elas irão comigo no dia em que eu fechar o meu último livro, depois de escrever a minha última crônica ou o último poema. Por isso deixo-as aqui, para eternizá-las e manter acesa a chama dessas pessoas que foram como nós, com os mesmos anseios, as mesmas preocupações, os mesmos temperamentos, diferenciando-se das pessoas de hoje mais pelo contexto histórico em que viveram do que pela natureza tão humana de suas vidas, capazes de, em meio aos atos mais banais, haverem deixado de alguma forma a sua marca sobre a terra, traços, gestos e feições que, por vezes, podem ser até mesmo encontradas em mim e no meu filho, embora sequer saibamos disso.
Terminados os antibióticos, já estou com a extração do dente marcada para daqui a poucos dias, quando farei nova incursão a Paraíba do Sul.
Por mais amigo que seja o dentista, ninguém gosta de vê-lo no consultório. Por que tinha que me lembrar disso logo agora?!…