Uma noite no Bodega's
Sobre amores impossíveis que acabam de forma trágica
Publicado
em“Antes de começar a escrever sua última crônica, o crítico de artes e espetáculos se entregou ao devaneio.”
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O negro tocava um piano percutido e dançante. Piano delinquente.
Saíra direto da zona do porto para as casas chiques do centro da cidade. “Um estilo sincopado, cheio de possibilidades, mas ainda um tanto anacrônico”, escreveria o crítico de artes e espetáculos após uma noitada caliente, ao som do piano do negro no cabaré Bodega’s. De fato, tocava e inebriava com a sabedoria de quem carregaria por décadas o apelido de “O titã ébano que ama e lança chamas”.
A cada três minutos, acendia a cigarrilha que esfumaçava o salão e as almas. Casais giravam e arriscavam passos epiléticos.
A cantora que perseguia os sons tirados por ele, como em um labirinto, era do ramo. Timbre harmônico, translúcido e o alcance de mezzo soprano.
Era mulata cor de jambo e de alma negra como a do negro. Tocavam e cantavam e fumavam até as primeiras horas da manhã. Bebiam pouco, mas com qualidade: tequila com abacaxi entre cálices de licor Frangélico, o néctar das bruxas eternas.
A negra tinha o porte de uma lady emblemática das noites de jazz. Cantava músicas escolhidas, garimpadas em algum lugar pouco conhecido, porém sensual; melodias parecidas com mornas e coladeiras, ritmos tradicionais das ilhas de cabo Verde. “A noite tem um só endereço no centro da cidade: o Bodega’s, onde o piano de Ébano e a voz de Maria Rosa formam um duo irresistível!”, assinaria o crítico em sua coluna no jornal de domingo.
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As ruas do centro velho transbordavam em dias de chuva. A Conselheiro Mafra era o ponto de referência das diferentes malandragens. As lojas dos turcos, os camelôs e pequenos assaltos durante o dia e, à noite, a zona boêmia de travestis, prostitutas e gigolôs. Lugar de contrastes. Reduto talhado para funcionar o Bodega’s.
O crítico não perdera uma noitada desde a primeira vez que vira Maria Rosa chegar para outra sessão.
A negra vestia sobretudo cáqui e esperava alguém sob o toldo em frente ao bar.
Chovia, chovia muito e tudo transbordava. Ébano parou o Cadilac, estacionou na vaga ao lado e des-ceu em traje impecável. Jogou a cigarrilha na sarjeta, apagou-a com o sapato bicolor, beijou a parceira e partiram para mais uma noite.
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Antes de começar a escrever sua última coluna, o crítico de artes e espetáculos se entregou ao devaneio:
“Antes de cumprimentá-la ,eu apontaria para a mesa do canto; ela tiraria a luva vermelha, de cetim, e estenderia a mão; eu a acariciaria com um lívido beijo; a morna traria o toque das paixões latinas; o cabaré estaria cheirando à tabaco e à gardênia; a negra ainda não saberia das influências de seus ancestrais de tribos africanas, dos orixás e muito menos da força dos rituais de magia e poder; o negro Ébano – o maldito e talentoso larápio do coração dela -, tocaria uma coladeira estonteante e todos saltariam vidrados, epiléticos; a chuva forte e o vento sul cobririam a ilha para toda a eternidade, a eternidade…. e Maria Rosa, a mulata jambo,… Maria Rosa, a deusa Afrodite,…Maria Rosa, a chama de luz que a tudo seduz, seria finalmente minha…minha….só minha!”
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O céu amanheceu azul e o dia com uma intensa luz tropical. Passados o vento sul e a chuva, a cidade parecia não querer acordar. Ninguém no centro velho. A praça 15 estava deserta. Até os vagabundos, os pulhas e os pirados do Largo da Alfândega, não foram localizados naquela manhã. Apenas na banca de peixes do Chico, no mercado público, pode-se ouvir o diálogo elucidador:
– Foi coisa de amor traído, visse? – argumentou o velho pescador.
– Essa gente que se mete à bacana só faz merda! – respondeu Ademar, o apontador do jogo do bicho. O cabo Astolfo disse que tinha muito sangue no cabaré; o cara negrão morreu ali mesmo, na hora, em cima do piano; o Astolfo ainda disse que ela sofreu mais; a navalha cortou o rosto de cima pra baixo, umas seis ou sete avenidas, coisa de tarado, visse?!…depois foi uma só no pescoço…ficou lá, ao lado do piano e do amante, agonizando, morrendo aos poucos.
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Dizem que o negro Ébano tocou piano naquela madrugada de uma forma ainda mais delinquente e epilética. A cidade se surpreenderia e choraria emocionada ao ler a crônica publicada na coluna do crítico de artes e espetáculos com o título: “Sobre amores impossíveis”.
Segundo o Boca, figura folclórica do velho mercado, coisas improváveis só acontecem assim quando sopra o vento sul.
Outros dizem que, antes do cabo Astolfo chegar para lavrar o boletim de ocorrência, alguém pensa ter visto a figura soturna do crítico de artes saltando a janela lateral do cabaré.