Na última terça-feira, dia 23, uma perseguição policial de dois indivíduos numa moto por viaturas da Rocam, tropa da Polícia Militar que utiliza motocicletas, foi transmitida ao vivo pela TV Record e pela TV Bandeirantes. O desfecho desta atração televisiva foi de dois homens, os perseguidos, baleados por um policial militar, quando já estavam caídos no chão.
Mais uma vez, é preciso discutir o uso da força letal pela polícia militar. Para tanto, é preciso fugir do discurso fácil de culpar automaticamente os policiais ou os suspeitos baleados. Não se trata aqui de tomar lado, como verdadeiro Fla x Flu, mas sim buscar a contribuição que casos como esse trazem para a discussão da segurança pública que queremos.
Da mesma forma, é necessário demonstrar que o uso da força letal pela polícia militar deve ser discutido e entendido pela sociedade, que é quem outorga legitimidade para que a polícia possa puxar o gatilho.
Entretanto, é sempre bom lembrar que como agentes públicos, ao decidir usar a força (ainda mais a letal) as autoridades devem necessariamente prestar contas à sociedade, uma vez que pessoas (criminosos ou não) podem ser feridas ou mortas
Antes de entrar na análise do fato em si, é importante refletirmos sobre a descabida narração da perseguição, que promoveu a espetacularização do episódio grave em pleno fim de tarde. Frases como “se ele atirou é porque o bandido estava armado!” ou “o cara é ladrão e bom piloto de moto!”, deram o tom da cobertura.
Isso não só distancia o telespectador do fato que acontecia em tempo real, uma vez que transmuta a transmissão de uma perseguição policial em filme da “Sessão da Tarde”, mas também distorce a realidade transformando policial e suspeitos em herói e vilão. Ou seja, despem toda humanidade tanto de um quanto de outro.
É lamentável que uma situação tão grave como essa – que ofereceu riscos para os policiais, para a população ao redor de toda a perseguição e aos perseguidos – seja coberta com ironia e leviandade. Um verdadeiro desserviço à segurança pública.
A outra dimensão da análise diz respeito ao uso da força em si. Não há como avaliar de maneira conclusiva a ação da polícia militar apenas com a análise do vídeo. Por isso, a apuração imediata do ocorrido com a devida transparência e prestação de contas por parte das autoridades públicas é essencial. Algumas perguntas precisam ser feitas e fatos devem ser esclarecidos à sociedade.
O arremesso do capacete com a moto em movimento ameaçou a vida do policial, a ponto de ele efetuar disparos com sua arma de fogo? Quando o policial efetuou disparos com os suspeitos caídos ele estava de fato em risco, os indivíduos estavam armados e apontando a arma para o policial? Havia outro procedimento que poderia ser utilizado, aumentando a segurança de todos os indivíduos? A perseguição era realmente necessária?
Sendo um procedimento que mobilizou um grande efetivo da PM, que colocou em risco inúmeros cidadãos, policiais e perseguidos, inclusive, e que acabou com dois baleados, a perseguição era realmente a melhor estratégia? Sabemos que a polícia militar de São Paulo é muito bem treinada e tem procedimentos para a preservação da vida – dos policiais e de todos à sua volta, inclusive dos suspeitos perseguidos – alguns destes procedimentos foram claramente ignorados, precisamos entender o porquê.
Outro aspecto que merece ser analisado é sobre a preservação do local do crime. Ela é fundamental para a correta apuração do caso. Se o policial precisou retirar a arma do indivíduo baleado, qual foi a razão para isso? E mais, por que ele efetuou dois disparos com a arma em direção ao chão?
Recente resolução da Secretaria de Estado da Segurança Pública estabelece procedimentos para a preservação do local do crime e essa é uma excelente oportunidade para testá-la na prática. Ela está sendo aplicada? Quais procedimentos foram adotados para preservar o local? Todas essas perguntas precisam ser necessariamente respondidas na apuração deste e de outros fatos similares, mesmo que não tenham sido filmados, e publicados à sociedade.
Considerando que o último balanço trimestral da letalidade policial demonstrou que só nos primeiros três meses de 2015, 104 pessoas foram mortas pela polícia em serviço na cidade de São Paulo – um aumento de quase 15% em relação ao mesmo período de 2014 e o número mais alto registrado no trimestre para os últimos 12 anos – não podemos fechar os olhos para a discussão sobre o uso da força letal pela polícia.
É imprescindível que algumas respostas sejam dadas para analisar a conduta do policial que efetuou os disparos no Jardim São Luís e de todo o apoio envolvido na perseguição. Se não é possível sabermos com exatidão o que ocorreu com dois helicópteros acompanhando de cima e filmando em tempo real, o que dizer dos inúmeros casos que acontecem todos os dias na cidade de São Paulo?
As imagens não escondem duas lições que podem ser tiradas desse episódio: a sociedade tem que ser parte da discussão sobre o uso da força pelas polícias e merece uma explicação sobre a conduta dos policiais.
Ivan Marques
Carolina Ricardo