Chovia. E o cheiro de terra molhada penetrava no casebre triste, perdido nos arrabaldes de uma vila antiga, iluminado por uma crepitante lamparina de querosene. Era fim de tarde, fazia frio.
Os jovens Pedro e Maria acercavam-se do pequeno berço onde a recém-nascida dormia como um anjo. Perto, os pais de Maria observavam a cena, sentados à mesa. Ouviam o diálogo do casal, pais de primeira viagem, enquanto bebericavam o café fresco adoçado com rapadura:
— Que nome daremos à menina?
— Qual era mesmo o nome da vó, mãe? Otacília?
A mulher fez que não era com ela. Entreolhou-se com o marido.
— Otacília não! Minha filha não vai ter nome de velha. Onde já se viu? Vai ser um neném de oitenta anos.
— Não amola, Pedro. Vai ter o nome da minha vó. Tá decidido! A vó que eu não conheci. Morreu quando minha mãe era criancinha.
— Pois não boto. Não boto esse nome. Se for pra chamar Otacília, fica sem nome. A gente chama de menina e pronto… Ainda que fique velha, vai ser sempre menina. Dona Menina.
O avô riu-se enquanto ia puxar do bolso uma palhinha de fazer cigarro. A avó reprovou, segurando-lhe a mão. Não podia fumar ali. O bebezinho…
A mãe da pequena continuou o discurso:
— Carreguei nove meses, senti as dores do parto, minha Nossa Senhora! Estou dando o peito. Está todo rachado. E não vou escolher o nome? Claro que vou. Quando tivermos outro, e for menino, você decide. Na sua vez você escolhe. Mas nessa quem manda sou eu.
O pai da recém-nascida ficou carrancudo. A criança, ignorando a disputa dos mais velhos, deu uma espreguiçada e soltou um leve ruído, como que fosse começar a chorar.
— Tá vendo? Fala baixo. Vai acordar a Menina.
— Você para com isso. Menina não. Otacília. Otacília e pronto.
Passaram os dias. A avó e a mãe da criança conversavam sobre que destino dar ao umbigo, que secava. Haviam de levar para longe de casa e enterrar debaixo de uma porteira. Havia uma porteira na fazenda, mas estava quebrada. Não convinha. Tinha de ser porteira nova. Daí, todos os caminhos estariam abertos para a criança, que se tornaria adulta. Ainda teria muita vida.
Intervia o pai:
— É bobagem. Tem que enterrar num vaso de roseira. Ou no chão mesmo. Perto da janela do outro quarto tem roseira. Vou pôr lá.
— Você não me fala isso! Mãe, diz para o Pedro parar!
A avó até saiu de perto. Não queria meter a colher nessa confusão de marido e mulher.
Apenas Maria, há pouco parida, terminava de falar, o avô da criança entra na casa com uma galinha depenada. O resguardo exigia quarenta galinhas. Depois, haja tempo para desenjoar de quarenta galinhas. A avó já fervia a água num panelão enorme sobre a boca fumegante do fogão. A lenha era atiçada com o sopro potente da mulher e estalava.
Pedro começou tímido:
— Vou no cartório amanhã. O Arildo e o Bento, do armazém do Seu Orlando, vão de testemunha comigo. Pedi para passarem aqui antes.
Maria trazia a filha ao colo. A pequena havia acabado de mamar. Falando baixinho, ela ordenou a Pedro:
— Pega ali na cômoda aquele papelzinho. Eu escrevi ali o nome todo. Confere. É para registrar bem assim, viu? Não erra nada.
Mal pegou o papel dobrado, Pedro jogou-o longe. Vira, de relance, o início da anotação, na letra redondinha da esposa: Otacília.
— Não! Este nome eu não ponho. Vou esperar você desistir.
— Mas Pedro, se não registrar logo, vai pagar multa.
— Eu pago! Não me importa. E se você insistir, fica sem registro mesmo.
Continuou aquele tendepá, no humilde casebre, por três semanas. Até o batizado, que devia ser tratado na igreja da vila, orago de Sant’Ana, foi ficando atrasado. Nos momentos de paz, os avós e o casal entregavam-se às obrigações comezinhas de suas vidas. E a recém-nascida brilhava, cheia de graça.
Um dia, Pedro, com uma enxada, tirava os matinhos que haviam crescido nas pedras do calçamento em frente da casa. E, absorto na tarefa e em seus pensamentos, repetia mentalmente que Otacília não haveria de ser. Era perto do meio-dia.
Foi quando viu o sogro chegando a pé pela estradinha, com o chapéu de feltro que usava toda vez que ia à vila. Vinha com um envelope pardo na mão. Pedro adivinhou em um instante de onde ele estava voltando. Sentiu-se traído, deu um berro de raiva, largou fortemente a enxada no chão e saiu correndo para o mato.
— Otacília não! Otacília não!
E feliz vinha o avô. Fora ao cartório do registro civil, com Arildo e Bento de testemunhas, registrar a netinha Mariana.
*Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com