Jair Bolsonaro não é meramente um presidente incompetente e desastrado, incapaz de lidar com a maior crise sanitária do último século por falta de conhecimento ou inexperiência em gestão. Ao contrário disso, suas declarações e atos normativos durante a pandemia são parte de uma estratégia de fazer a população se expor ao coronavírus, com objetivos políticos. E o resultado disso é um país com mais de 215 mil mortos, mesmo contando com uma rede universal de saúde pública como o SUS.
O que Bolsonaro faz, portanto, é mais do que crime de responsabilidade. “Se trata de crime contra a humanidade”, diz a jurista Deisy Ventura, especialista na relação entre pandemias e direito internacional. Deisy é doutora e mestre pela Universidade de Paris 1, Panthéon-Sorbonne.
Em entrevista ao jornalista Luis Nassif, da TV CGN, Deisy defendeu que o Brasil não deveria esperar uma providência de autoridades estrangeiras, como o Tribunal Internacional Penal, para punir Bolsonaro.
“O direito brasileiro já tem todos os elementos [para sancionar e afastar Bolsonaro], mas esbarramos na Procuradoria-Geral da República e na Presidência da Câmara, que não leva as representações [a favor do impeachment] adiante. Isso precisa parar. É uma questão de salvar vidas.”
Professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, Deisy Ventura faz parte de uma equipe de cientistas políticos, epidemiologistas e advogados que, desde o começo da pandemia, em março de 2020, analisa a relação dos atos normativos publicados oficialmente pelo governo federal, os atos de obstrução aos planos de gestores locais e o discurso negacionista de Bolsonaro.
“Existe uma relação entre eles. O que o presidente fala tem uma correspondência nos atos de obstrução e tem correspondência nos atos normativos. Alguns atos normativos desaparecem no meio da propaganda, mas eles estão lá e precisam ser resgatados porque a gente precisa parar de olhar só o que o presidente fala e olhar o que ele faz. A intencionalidade é claríssima, ele quer disseminar o vírus. Ele quer a retomada econômica, que as pessoas vão trabalhar e aí fica claríssima à incitação à exposição do vírus”, disse.
“Isso precisa ser dito com todas as letras: ele está fazendo sistematicamente uma propaganda contra a saúde pública, que significa encorajar o desrespeito das medidas de saúde pública adotadas pelos governadores e prefeitos, desacreditar autoridades sanitárias, trabalhar contra qualquer estratégica de contenção do vírus (uso de máscara, evitar aglomerações). Ou seja, existe uma estratégia claríssima de impedir, boicotar qualquer campanha de atores sociais, principalmente gestores locais, que busquem conter o vírus”, avaliou.
“O que a gente [no estudo] faz é mostrar essa intencionalidade para que desapareça do debate público essa ilusão de que o presidente é desorganizado, está fazendo isso por acaso. A gente vê claramente o plano de disseminar o vírus o mais rapidamente no Brasil”, comentou.
“Nosso objetivo é avaliar o impacto das normas sobre os direitos humanos, porque o que aconteceu é que, embora a decisão do STF tenha nos salvado da atuação exclusiva do governo federal, ela causou uma inflação normativa, uma judicialização enorme e, neste momento, do ponto de vista jurídico, nós vivemos o caos. Alguém tem que acompanhar essas normas e ver o que vai acontecer com o direito brasileiro. As marcas são profundas.”
O plano de Bolsonaro, de disseminar o vírus na sociedade, encontrou resistência de técnicos do Ministério da Saúde e a solução para o líder de extrema-direita foi esvaziar a Pasta. Daí o processo de militarização conduzido pelo general Eduardo Pazuello, que obedece a todos os pedidos inescrupulosos do presidente, algo que os médicos e ex-ministros Nelson Teich e Luiz Henrique Mandetta se recusaram a fazer.
“O mais importante é que retiraram os sanitaristas, retiraram as pessoas que não seguirão o credo do presidente porque têm formação técnica, porque não trabalham contra a saúde pública. O Pazuello entrou para fazer o serviço sujo, para deixar de lado a nossa tradição em saúde pública. Essa instrumentalização, esse aparelhamento do Ministério da Saúde é significativo”, disse Deisy.