Azedando o leite
Soraia e Adriano vivem clima de amor até o flagra que gera discórdia
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emSoraia e Adriano, a despeito de quase duas décadas juntos, ainda conseguiam sentir fagulhas da fogueira que os tomou quando jovens. Para quem os conhecia, era nítido o amor do homem pela esposa, que até concordava, mas gostava de provocar intriga para não deixar a peteca cair. Dessa forma, um “Te amo!” era algo raro de sair dos lábios da mulher.
— Enquanto o Adriano adoça a sobremesa, sou eu que jogo sal no almoço – Soraia costumava falar para as amigas.
Nessa mistura de sabores, aqueles dois pareciam se entender. Tanto é que, até onde se tem notícias, nunca se ouviu um “ai” do sujeito, mesmo porque todas as discussões eram eternos monólogos da Soraia. Livre, leve e solto, Adriano era o tipo que levava ao pé da letra a música de Eri do Cais e Serginho Meriti, cantada pelo Zeca Pagodinho: “Deixa a vida me levar (vida, leva eu)…”
Sempre na busca por alguma discórdia, Soraia tratou de colocar câmeras escondidas em todos os cômodos do apartamento do casal. Ela queria pegar alguns podres do marido, que devia ter ao menos unzinho. Afinal, ninguém é perfeito neste mundo de Deus. E não seria justamente o Adriano exceção à regra. Ou seria?
Soraia inventou uma desculpa para passar a manhã fora de casa. Voltaria na hora do almoço. Como era domingo, os pombinhos costumavam comer lá pelas duas horas da tarde. A cozinha naquela manhã seria toda do Adriano, que abraçou a ideia de preparar estrogonofe de camarão.
Depois de bater perna pelas ruas, eis que Soraia chegou ao lar, doce lar, quando o esposo já estava arrumando os talheres sobre a mesa. Para enfeitar, o danado ainda arrumou um lindo vaso com duas rosas vermelhas entrelaçadas. Ela pendurou a bolsa no gancho da porta e foi ao banheiro lavar as mãos.
Diante do espelho, ela se questionou:
— O que será que o Adriano aprontou?
Como não recebeu resposta satisfatória, retornou à sala, onde o marido a serviu. O casal degustou aquela iguaria.
— Está do seu gosto, amorzinho?
— Hum… Um pouco mais de sal seria bom.
Adriano fez menção de se levantar, mas foi contido pela esposa.
— Deixa! Eu pego!
Na cozinha, ela ainda guardava o gosto da primeira garfada: ”Que delícia! O desgraçado sabe mesmo cozinhar.” Retornou para a mesa e se sentou.
— E o sal, minha vida?
— Me lembrei que o cardiologista falou pra eu diminuir o sal. Pressão alta. Lembra?
— É verdade. Você está certa, meu bem.
Passaram o resto do dia juntos. Assistiram quase toda a primeira temporada de uma série argentina, “Meu querido zelador”, com o astro Guillermo Francella. Enquanto Adriano gargalhava, Soraia simulava um sorriso aqui, outro ali.
Lá pelas dez da noite, o casal foi se deitar. Adriano adormeceu logo em seguida, momento em que a mulher aproveitou para olhar a gravação das câmeras instaladas por toda a residência. Para sua surpresa, o marido levantava e abaixava a tampa do vaso para fazer xixi. Ao som de Cauby Peixoto, dançava abraçado a uma fotografia dela. Varria todo o apartamento e passava pano e, para piorar, ainda lavava a louça melhor do que Rita, a empregada.
Já desistindo de buscar algo que comprometesse a conduto ilibada do esposo, eis que Soraia abriu aquele sorriso. Sorriso mudo, é verdade, mas apenas para não acordar o Adriano, que roncava ao seu lado. Finalmente, ela havia encontrado o que tanto procurava: um deslize do cônjuge. Pois não é que o dito cujo bebia leite direto da caixinha?
Ah, agora, ela tinha um trunfo. Sábia que era, saberia usá-lo no momento oportuno. Soraia virou-se para o lado e disse bem baixinho:
— E como ronca o pilantra!
*Eduardo Martínez é autor do livro “57 Contos e Crônicas por um Autor muito Velho”.
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