Ainda
‘Sou eu, um barco ouvindo em segredo, degredada em sombra’
Publicado
emNo silêncio: compasso de solidão.
Depois que a música (me) acaba,
fazer o sem-lugar onde desvio
linguagem e desejo.
Fremir de ondas
entre mim e canção,
escrever as pausas de outra:
mais sutil, de sombra.
O que eu não toco: pertença minha
(toda escuta, posse).
Onde não sou e não tenho;
até que ouço, simplesmente.
Presa por vontade
de escutar o que é livre:
o inalcançável movimento
do mar
– o chamado:
palavras instigando ondas.
Ouvir o tempo insondável
no mesmo silêncio de corredores e sótãos.
Menina, lia. Escutava Quintana
onde todas as canções comandam a nau
apinhada de meninos mortos.
Terrível-suave.
E virgem. O silêncio virgem.
Ocupá-lo com desejo e memória,
violentá-lo. Se tento calar,
bebo o tempo: nau frágil.
Um ponto afogado e luminoso da escada,
perto do peito: o porão do prédio.
Sou eu, um barco ainda ouvindo em segredo.
Degredada em sombra.
Um buraco de luz; deixada pela canção
e pelas brechas nos tijolos.
Abri a porta para o vazio.
Veio a rebentação. Nem perto o mar.
Os vizinhos não sabem; suas casas quando acendem;
luzes me arrebentam faróis no peito.
As cortinas me abrem. Não saí do quarto.
Tudo veio à voz, depois da voz, minha voz sibilante.
O corredor ainda grande.
Meu sem-lugar: linha do tempo.
Tento uma ausência. Tudo lembrando.
Imagens correm, três delas, ardendo.
O novo. Arrebenta o novo. Oscilações de novo.
Até mesmo no fogo. Tudo são águas.
É um estar-se preso, realmente
(como no amor).
Quem ouve o silêncio, sem fim,
devorando quem canta,
move o sagrado, morre em mim.
Não só leveza. Todo instante é um corte,
toda delicadeza funda o sal na voz
e um corte sempre fala ao dentro.
Arde o vigoroso.
A carne não é rente;
requentada no sangue, vem antes
(na alma do que não fomos).
Nos afogamos.
A palavra, aprende:
vai fracassar.
Como a música, seu fim.
Um tempo de mortes, no sempre.
Mas não enquanto:
o canto.
……………………..
(Betine Daniel é autora de “Ainda Ancora o Infinito, Ed. Moinhos, 2019)