Um velho ditado revela que, em qualquer direção ou sentido, na maré ruim desgraça pouca é bobagem. Outro dito popular informa que urubu, quando está de azar, até o debaixo caga no de cima. Não bastassem os dados inflacionários, os índices de desemprego e da fome, e as estatísticas da pandemia, que já infectou quase 20 milhões e matou mais de 540 mil brasileiros, o governo enfrentará em breve uma guerra surda no plenário do Senado Federal, responsável pela aprovação ou rejeição de indicados ao Supremo Tribunal Federal e demais tribunais superiores. “Terrivelmente evangélico”, o advogado-geral da União, André Mendonça, é a bola da vez. Aposta do presidente Jair Bolsonaro para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, Mendonça precisa contabilizar pelo menos 41 dos 81 votos da Casa revisora do Congresso para ser aprovado, isto é, maioria absoluta.
Avaliando os últimos dias de embate entre governo, STF e CPI da Covid, o prenúncio é de que o clima que já é ruim deve ficar pior. As resistências surgem de todos os lados. Não importa como, a oposição quer derrotar Bolsonaro. Entre os bolsonaristas, a preferência é por outro nome, talvez o de Augusto Aras, procurador-geral da República e aliado de primeira e última horas. Pesquisas informais, normalmente realizadas no café dos parlamentares, indicam que a relação de opositores à indicação do AGU contabiliza de 33 a 36 senadores. Essa margem representa uma má notícia para o presidente da República e péssima para André Mendonça.
Bolsonaro perderia ainda mais prestígio e dificilmente conseguiria conter o esvaziamento de sua tênue popularidade. Extremamente religioso e com pouco jogo de cintura e confiança políticas, a verdade é que Mendonça não agrada as excelências do Senado. Por isso, além de ser jubilado antes do tempo, Mendonça correria o risco de engrossar uma seleta lista de ex-futuros ministros do Supremo. Em 2015, o ministro Edson Fachin enfrentou situação muito parecida. Indicado pela presidente Dilma Rousseff, ele passou 11 horas sendo interrogado pelos senadores e, no fim, recebeu 52 votos a favor – apenas 11 além do mínimo necessário – e 27 contra.
Se André Mendonça for barrado, será quebrada uma velha tradição nas indicações ao STF, criado em 1890, após a Proclamação da República. Nesses 125 anos, apenas cinco indicações do presidente foram derrubadas pelos senadores. Todas as rejeições ocorreram em 1894, no governo do marechal Floriano Peixoto. Conforme pesquisa da área de comunicação do Senado, o caso mais emblemático foi o de Cândido Barata Ribeiro, que amargou a reprovação quando já atuava como ministro do STF. Na época, o escolhido podia assumir as funções antes de definida a indicação. Após dez meses julgando processos, Barata Ribeiro foi obrigado a deixar o casarão da Rua do Passeio, no Rio, onde despachavam os magistrados da Suprema Corte.
Nome de rua em Copacabana, Barata Ribeiro foi médico-cirurgião, ajudou a derrubar a escravidão e a monarquia, mas perdeu o cargo porque não tinha formação jurídica, condição sine qua non para um candidato ao STF. Ele também ficou conhecido por ser tio-avô do falecido comediante Agildo Ribeiro. Dos 11 nomes sugeridos para o Supremo, Floriano Peixoto perdeu outras quatro: os generais Ewerton Quadros e Galvão de Queiroz e os civis Demóstenes Lobo e Antônio Seve Navarro. Ewerton e Demóstenes também foram rejeitados porque não conseguirem comprovar formação jurídica. Os outros dois eram graduados em direito, mas não chegavam a ser expoentes do mundo do direito.
Curiosamente, Barata Ribeiro perdeu o cargo de ministro, mas, semanas depois, fundou o Partido Republicano Constitucional e, cinco anos mais tarde, foi eleito senador e passou a ser colega de muitos dos políticos que lhe negaram o Supremo Tribunal Federal. Tentando evitar o fiasco, Mendonça já começou a peregrinação por gabinetes de senadores, principalmente aqueles considerados desafetos do presidente da República. Só para lembrar, os rancores, a resistência e a antipatia a Jair Bolsonaro são os mesmos protagonizados por Floriano Peixoto, o Marechal de Ferro.