Quando o tuíte do general Villas Boas foi produzido, na véspera do julgamento de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2018, os militares de alta patente, principalmente os integrantes do Alto Comando do Exército, tinham todos os argumentos nas mãos. Como o Supremo Tribunal Federal não aceitar a prisão em segunda instância de um comunista, ladrão, arruaceiro e cachaceiro. Seria uma afronta ao Brasil e aos brasileiros? E isso há dias ou semanas da polarizada eleição entre Jair Bolsonaro e Fernando Haddad, representante do líder dos esquerdopatas, considerados pelos direitopatas como sinônimo de hansenianos. Por isso, na avaliação desses militares graduados, o STF tinha de tomar uma urgente e clara posição, preferencialmente contra Lula.
Foi o que ocorreu. O Supremo, que, na visão dos ideólogos do governo, não é o dono do mundo e que, quando eles quiserem, pode ser invadido por um cabo e um soldado, decidiu manter Lula na prisão, pavimentando o caminho para a vitória menos complicada de Bolsonaro. Mesmo para leigos em leitura militar, independentemente de quem escreveu ou assinou, é isso o que está agarranchado no relato do tuíte do general Villas Bôas, então comandante do Exército – nomeado por Dilma Rousseff. Sua língua solta ou vaidade (quem sabe as duas coisas) ajudou a desenterrar uma decisão que já estava no arquivo morto da maioria dos advogados, juristas, magistrados, jornalistas e da sociedade. Pior foi comprovar a tentativa de emparedamento do Supremo, desejo antigo dos bolsonaristas
Voltando no tempo, lembremos inicialmente o dia 7 de novembro de 2019, quando o plenário do Supremo, depois de meses de expectativa, decidiu analisar três ações e derrubar, por 6 votos a 5, a possibilidade de prisão de condenados em segunda instância, alterando um entendimento adotado desde 2016. Com o reposicionamento, desde aquela data réus condenados só podem ser presos após o trânsito em julgado, ou seja, depois de esgotados todos os recursos. Antes disso, somente serão permitidas as prisões preventivas. Votaram contra a segunda instância os ministros Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso e Dias Toffoli, voto de minerva.
Também vale lembrar que, encerrado o julgamento, Dias Toffoli – presidente da Corte à época – ainda chamou atenção do Congresso Nacional, lembrando que os parlamentares poderiam – se tivessem vontade – alterar o artigo 283 do Código de Processo Penal, de modo a determinar em que momento haverá prisão em caso de condenação. Por absoluta falta de interesse, até hoje nenhuma movimentação dos congressistas, a maioria esmagadora com algum tipo de pendência na Justiça. Lula foi solto um dia após o STF ter considerado inconstitucional a prisão em segunda instância, depois de 580 dias preso na carceragem da Polícia Federal em Curitiba. O time estava perdido, pois estava concluído o mérito da matéria e Jair Bolsonaro eleito presidente da República.
Repetindo, era novembro de 2019. A posse havia ocorrido quase um ano antes, precisamente em 1º. de janeiro de 2019. Voltando um pouco mais no tempo, chegamos à data do tuíte do general: 3 de abril de 2018, um dia antes de o STF julgar um habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do triplex do Guarujá. Além do texto creditado ao general Villas Bôas, o mais curioso desse julgamento foi o voto da ministra Rosa Weber. Conforme o livro General Villas Bôas: Conversa com o comandante, de Celso Castro, no dia 2 de abril, uma segunda-feira, o comandante discutiu a ideia de “admoestar” o Supremo. Verbo transitivo direto, admoestar significa censurar, repreender, advertir, prevenir. No caso em questão, os generais o utilizaram apenas como eufemismo, porque, na acepção da palavra, a intenção era golpear o STF.
A primeira postagem, publicada no dia seguinte, tinha o seguinte texto: “Nessa situação que vive o brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais. Asseguro à nação que o Exército brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Na sessão de 4 de abril, Rosa Weber afirmou ser contra a prisão em segunda instância, mas que seguiria a posição majoritária estabelecida em 2016, por se tratar de uma ação referente a um caso específico. “Minha leitura constitucional sempre foi e continua sendo a mesma”, concluiu a ministra. Mudou por quê?
Lula acabou tendo o pedido negado pelo plenário do STF e, no dia 7 de abril, foi preso em Curitiba. O general negou favorecimento político ao capitão Bolsonaro. O tempo passou, mas Villas Bôas, cuja saúde lamentavelmente é bastante precária, achou melhor confessar sem camuflagem o gesto que mudou a história política do país. Teriam sido meras coincidências a cronologia dos fatos, os próprios fatos e o gentílico da ministra e do ex-comandante do Exército? Provavelmente não, considerando o honroso passado de ambos. Na verdade, como eu quero mais é me alienar, tomara que não. Deliberada forma de arrependimento ou não, a confissão do general Villas Bôas ressuscitou mais lebres do que enterrou bodes.
Ex-decano e ministro aposentado do Supremo, Celso de Mello virou “puxador” de samba nesta terça-feira gorda de carnaval. O discurso anterior ao voto no dia 4 de abril ecoou por várias partes do Brasil. Naquela oportunidade, Celso de Mello disse que “intervenções castrenses, quando efetivadas e tornadas vitoriosas, tendem, na lógica do regime supressor de liberdades, a diminuir, quando não eliminar, o espaço constitucional reservado ao dissenso Tudo é inaceitável”.
Hoje, dia 16 de fevereiro de 2021, o ministro Gilmar Mendes foi ainda mais enfático ao afirmar que a Lava Jato atuou para prender o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e deixar o caminho aberto para a eleição de Jair Bolsonaro. É o que acha boa parte dos brasileiros.
Melhor que o senhor, general Villas Bôas, tivesse ficado calado, sobretudo porque além de não ser mais comandante, não tem mais o apoio que imaginou ter na caserna. Pior ainda foi ter a certeza de que um cabo, um soldado e pólvora seca são insuficientes para peitar o Supremo e o país. Em outras palavras, quem tem medo não se estabelece. A maioria dos ministros do STF provou que não têm.
*Wenceslau Araújo é jornalista